Capítulo 8 – A volta de Haydee.

“O poder primordial, aquele carregado por gerações familiares, ainda é usado como delimitador em sistema de Castas em alguns povoados, apesar daqueles que o seguem, envergonharem-se de tal ato.” – Way Vutanni, antropólogo grekilano.

JÁ ERA NOITE e eles haviam passado por algumas vilas no decorrer do caminho para o topo da montanha. A estrada era toda iluminada por tochas, trabalho feito pela população local, constituída por homens e thonzes humildes vestidos com o que havia de mais simples nas lojas do mercado por ali.

O ambiente era mais agradável que o normal, mesmo com a serenidade e frescor da noite, e a temperatura amena da ejámule. Havia cachoeiras, consequência do derretimento repentino da neve na montanha.

Sob a iluminação laranja de Kìrbept, segunda lua de Aquala, eles tinham a carruagem ainda puxada por um par de peixes azuis tão parrudos quanto dois cavalos. Corsena, a égua de Thomas, voava no céu e adentrou o bosque, de onde não saiu mais, e logo depois eles foram parados por dois homens na estrada de tochas.

– Boa noite. – eles se apresentaram para o cocheiro, cuja aparência não levava a imaginar boa coisa. – Podemos checar?

– Sem sombras de dúvidas, meus rapazes.

Os dois policiais vestiam roupas de algodão e aço pesado que cobriam o corpo todo. Usavam dois cajados encurtados, um em cada lado do cinto, cuja pedra da ponta permanecia flutuando e ardendo em chamas na frente dos peixes para que fossem parados.

– Com licença. Boa noite, eu sou Ghermo e ele, Chewneno. – o primeiro policial se apresentou. – Antes que perguntem, não precisam se preocupar, só estamos verificando a segurança daqui.

– Devido aos atuais ataques em Longamínis, estamos cuidando de Émi’Lian, para que não nos chegue nada de ruim – intrometeu-se Chewneno, homem de cabeça raspada e barba negra grande.

– À vontade! – disse Ophelia.

– Podem colocar as cabeças para trás, por gentileza? – perguntou Ghermo. – Não queremos que se queimem.

Todos sentaram-se direito nas poltronas e a pedrinha do outro cajado flutuou janela adentro, e quando pairou no centro dos garotos, ardeu em chamas verdes. Então, os olhos do policial seguiram todos os cantos da carruagem.

– Não há nada. – cochichou Chewneno no ouvido de Ghermo.

– Sem querer ser rude, – disse Ophelia, com a cabeça na janela e olhar fixado no homem. – por quê haveria alguma coisa aqui? Vocês querem deter o mau, eu presumo. Mas como fariam isso se os Meonans não usam nenhum tipo de material para atacar, eles só usam a mente.

– Minha jovem, sinto lhe falar mas essa semana outros de Émi’Lian e Longamínis já encontraram armas poderosas como aquelas encontradas na Terra.

– Armas… com gatilho e tudo mais? – indagou a menina.

– E muito pior. Se usarem essas armas, Aquala poderá sofrer, e isso é grave. Por isso usamos o fogo verde, ele denuncia se há metal na carruagem.

– Então podemos continuar? – perguntou a menina, delicadamente.

– Por favor, e desculpem o incômodo.

O fogo vermelho diante dos peixes se apagou, e eles puderam retomar a viagem.

Rosana, principalmente, permaneceu bem alerta quando os policiais falaram sobre as armas. A mulher nunca imaginou que a situação estava tão agravada quanto daquela forma. Os garotos podiam ter em mente que o assunto era delicado, mas não como a sra. Guinard acreditava, não como os mais velhos sabiam. Somente quem já viveu em Aquala saberia o poder que as armas tem sobre toda a terra aqualaeste. Se Baltazar e Lutile ainda não sabiam daquela notícia, Rosana os contaria quando chegassem ao Instituto.

Eles passaram por outras vilas e rios que desembocavam em quedas d’água altíssimas. Aqueles dias estavam diferentes dos normais, os aqualaestes em Longamínis eram vigiados vinte e nove horas por dia pelos Protetores, e quando a carruagem atingiu o topo da montanha, eles olharam o céu estrelado. Ninguém recusou a se hipnotizar pelas ondas marinhas que eram desenhadas pelas estrelas e as duas luas, uma de cada lado. Não havia nenhuma lula colossal ou baleia com Protetores os vigiando. Ali eles que estavam de olho em tudo.

Quando puderam voltar à realidade, avistaram o Bosque Abençoado mais a frente. Era um emaranhado de árvores grandes, cipós e mais árvores nascendo de outros troncos, como se fossem galhos. Havia um caminho para dentro do bosque que deveria ser totalmente escuro, mas a luz azul do céu criava feixes que atravessavam as folhas e chegavam a tocar o chão de terra, iluminando-o divinamente.

Os garotos suspiravam com o que viam, era tanta beleza numa grama que parecia soltar luz por ela mesma com tamanho brilho que refletia. Eles avistavam as casas nas árvores e as pontes de madeira onde ainda passavam algumas crianças, homens e mulheres. Dava para ver que a segurança lá era impecável, pois thonzes brincando nos galhos e guardas humanos que dançavam nas fogueiras interagiam como se as espécies fossem uma só. Quanto mais adentraram, mais beleza viam. Eles, com as cabecinhas fascinadas para fora das janelas e do teto, assistiam às águas brilhantes que circulavam entre os pés das árvores. A correnteza, pelos troncos, as faziam subir como se tivessem vida própria, passando pelas casas e subindo ainda mais para alcançar mais outras, até que as gotas fossem jorradas no topo dos galhos tão lentamente que parecia não haver gravidade.

A carruagem, puxada pelos peixes, começou a andar lentamente com o embasbacar daquele lugar. Thomas e Laura, levantados e acima do estofado, sentiam as gotas tão brilhantes que pareciam pequenas estrelas os tocando. Eles abriram os braços e fecharam os olhos, já que aquela sensação de pureza eles poderiam procurar em todos os lugares, mas só encontrariam lá.

Quando abriram os olhos, conseguiram ver uma luz celestial de cima e sentir os pingos tocarem seus narizes. As casas de madeira nas árvores chegavam a estar altíssimas, e não tinham portas nem janelas, apenas aberturas para os thonzes passarem e olharem para fora.

Um pouco adiante, ainda havia mais subida. Ao contrário do que eles pensaram, a montanha ainda não tinha terminado, e depois de uma colina, puderam enxergar mais árvores e, no meio, uma casa. Apenas uma casa. E, quanto mais eles se aproximavam, mais perceberam o tamanho daquela mansão. Parecia um castelo. Algo bom. Continha uma beleza e paisagem marcantes, não só pelo bosque que a cercava, mas também pelo conhecimento de sua origem. Era como se o Instituto Flintch fosse feito para espalhar bondade e acabasse por ficar com parte dela fixada em suas paredes e muros.

– Por quê fica tão longe? – perguntou Felipe, quando a carruagem já havia parado e Thomas, descido. Estava hipnotizado com a beleza diante dele. – Não deveria ser um lugar para ajudar e cuidar de pessoas que precisavam?

– Não percebeu? – falou Sofia, pronta para descer também. – Os pais de Thomas construíram aqui porque é mais perto de Phoerios.

– Assim, nosso deus poderia olhar todos os doentes e ajudar a cuidar deles. – respondeu Guido, com os pés descalços na terra fria e cintilante.

– Como as pessoas chegavam aqui? – perguntou Felipe novamente, agora em pé junto a todos e andando pela grama macia.

– Filho, – a sra. Guinard pôs as mãos nos ombros do menino. – os Flintch resolveram esse problema construindo uma espécie de elevador.

– Elevador? Como, mãe?

Rosana foi até o jardim do Insituto, que não dava para ser distinguido, e mostrou uma cerca circulando um buraco no chão.

– Mesmo para aqualaestes tão poderosos quanto eles, quebrar uma montanha havia demorado mais de dois anos.

Os garotos se aproximaram de onde a mulher estava. Ela apontava para um furo redondo e escuro no chão. Não dava para ver o que havia lá embaixo.

– Existia uma corda feita de cipós de amanduyecteira que trazia as pessoas para cá. Era o modo mais rápido de se chegar. Teríamos vindo por aqui se ainda houvesse essa corda.

Rosana podia observar o Instituto Flintch que, em cada cantinho, encontraria uma lembrança diferente. Ela fechou os olhos e viu Sandra e Robert de mãos dadas a chamando para entrar pela porta. Aquela mansão estava completamente diferente do que antes era, assim como a relação com os pais de Thomas na época. A sra. Guinard ficou emocionada quando se aproximou mais ainda das pilastras na frente do portão da casa.

Os meninos observavam a reação da mãe de Felipe. Uma tristeza, por um instante, tocou Rosana. Ela sentia-se sozinha a todo momento, mesmo estando com seu filho e entre amigos. O coração da mulher bateu como antigamente, quando ela podia escutar a voz de Sandra a chamar para a colheita do almoço ou para passear, também, na companhia dos padrinhos de Thomas. Eles eram melhores amigos desde aquela época, quando somente planejavam criar famílias. Naquele tempo, elas já imaginavam que seus filhos seriam inseparáveis como eles. E acertaram.

A cada passo da sra. Guinard, uma lembrança diferente lhe vinha à cabeça. Ela lembrava de quando Maldo e Haydee ainda eram casados. Eles viviam dançando pelo jardim com Baltazar, que ainda era um tigre jovem.

Um pedaço de Rosana estava lá, escondido nas profundezas de um passado tão feliz e inesquecível. Ela subiu os degraus e, sem medo, encostou na porta do Instituto, que se abriu ao menor toque de seus dedos. Por um momento, ela havia voltado no tempo, onde as pessoas que mais amava viveram felizes o máximo que conseguiram. Eles não estavam mais lá. O tapete vermelho estava escuro e não tinha mais Sandra passando por cima dele para mostrar os vestidos que ganhava de presente de Robert.

Todos os garotos seguiam Rosana Guinard em silêncio, principalmente Thomas, que permanecia quase que colado na mulher.

– Foi aqui… – a mãe de Felipe tampou o rosto com as mãos. Chorando, parou diante da escuridão dentro da mansão sobre um tapete vinho e sujo. Thomas a abraçou forte. – Os melhores momentos da minha vida eu passei ao lado de Sandra, e não tive nem a oportunidade de agradecer.

Rosana secou os olhos e procurou uma alavanca na parede perto dali. Quando puxou-a com força, o atrito na pedra criou uma pequena faísca que tocou num fio branco bem parecido com um cipó. O brilho do clarão nos pés da mulher iluminou aquele fio, que estava preso em todos os cantos do Instituto Flintch.

Primeiramente, a luz incandescente da linha tornou possível os garotos verem o salão de entrada. Era imenso. O chão era de pedras finas como o mármore e o marfim. O tapete vermelho se extendia até uma escadaria no final, onde se dividia em duas, uma para a direita e outra para a esquerda.

O fio iluminava em dourado os cômodos e os tetos altíssimos com lustres quebrados, mas ainda assim eram magníficos, feitos de zarédias, pedras mais preciosas que ouro. Grandioso, exuberante, espetacular, luxuoso, soberbo, opíparo e, acima de tudo, antigo lar de pessoas carentes que podiam se inebriar com tamanha magia que acomodava cada pedacinho de seus corações. Aqueles que um dia acreditaram na família Flintch estavam marcados na história de um sonho que se tornou realidade.

Mesmo com a estrutura arquitetônica da superfície interior estando quebrada e rachada pela ação do tempo, nada poderia tirar a satisfação que Rosana teve ao rever a mansão. Foi triste lembrar de tantos momentos com Sandra e ter a certeza de que nada voltaria.

– Vamos conhecer os quartos? – a mulher virou-se para os garotos novamente, porém forçando um belo sorriso. O redor de seus olhos estava úmido, dava para reparar o que ela realmente sentiu quando entrou no Instituto. Thomas não demonstrou, mas estava muito feliz por dentro, pois, com aquelas lágrimas, ele havia entendido o significado que seus pais tinham para a sra. Guinard. Por um lado, as recordações eram boas, mas o fato de serem apenas lembranças o entristecia.

– Você se lembra de tudo? Onde fica os quartos? – perguntou Thomas, enquanto ainda delirava-se com o tamanho do lugar.

– Temos vinte e cinco opções, pelo que eu me lembre. – Rosana arrumava as malas, enfileirando-as com a ajuda de Guido, Felipe e Nadjo. – Obrigada, meninos.

– Sinto que vou me perder. – brincou Laura, e segurou a mão de Thomas. – Vamos andar.

– Esperem. Eu os guiarei, ainda lembro de alguma coisa. Aos poucos eu devo lembrar de cada cômodo, afinal, são tantos anos…

Quando Luka adentrou o Instituto Flintch feito um potuco louco, Rosana começou o trajeto com os garotos a seguindo. Havia segredos como vários objetos tão grandes quanto eles cobertos por lençóis brancos. Estavam espalhados por todo o lugar, como se fosse um mausoléu. Eram peças de uma vida guardadas e prontas para mudança, porém paradas no tempo.

Eles andavam e tocavam nos panos empoeirados. Thomas, que volta e meia tinha rinite, ficou com o nariz vermelho e congestionado. A luz da linha dourada que iluminava o interior da mansão possuía um brilho reluzente que tremeluzia, mas não apagava. Subiram a escadaria e seguiram Rosana, que ia para o segundo andar à esquerda, cada um segurando suas malas quando Frederico já não tinha mãos para tantas bagagens.

– Esse lugar está precisando de uma faxina urgente. – comentou a sra. Guinard, quando ouviu um espirro de Thomas.

– É gigante, não vamos dar conta. – ele disse.

– Seus pais cuidaram de muitos doentes e ainda deixavam tudo isso bem limpo. O chão e até o teto brilhavam. Podemos conservar essa casa, mas com o tempo.

– Obviamente seria impossível acordarmos amanhã e limparmos tudo no mesmo dia. – eles andavam, acompanhados de todos os outros.

– Com certeza. E, além do mais, amanhã pela manhã Arbinelo Treki deve chegar, e logo o treinamento vai começar.

O garoto havia se esquecido daquele compromisso, e quando Rosana o lembrou, um peso caiu sobre suas costas. Ele se sentiu acomodado, afinal tinha o romance com Laura, a beleza do lugar e seus amigos ainda o acompanhando. Ele queria tanto ir atrás dos duyoktu que, ao lembrar que teria trabalho árduo no dia seguinte, ficou com uma baita preguiça.

– Estou um pouco assustado com essa história de um senhor vir de tão longe para me ajudar, me ensinar e me direcionar a um caminho tão perigoso. – o menino desabafou. – Parece que ele vem para me levar à morte.

– Não diga uma coisa dessas! – intrometeu-se Felipe. – Arbinelo vem exatamente para que você não sofra.

– Mas já estou sofrendo com o mistério do futuro. Não sei o que ele me aguarda.

– O poder que esse mistério tem sobre nós é um sofrimento bom se você acredita que o futuro será bom. Se for pessimista, aí sim você terá um sentimento ruim. – explicou Rosana. – Pense em coisas boas para que elas aconteçam a você.

Eles chegaram a um corredor imenso e escuro. Havia um quarto logo perto deles, que era pequeno como um armário de vassouras e tinha lampiões para serem acesos. A sra. Guinard pediu para que seu filho os pegasse, e então ela esfregou a ponta dos dedos indicadores na palma da outra mão. O pequeno atrito fez sair uma chama que acendeu todas aquelas armações de cerâmica e vidro num só toque. Naquele mesmo instante, a corda de luz dourada apagou e eles só permaneceram com a iluminação dos lampiões.

Houve gritos instantâneos, principalmente de Laura e Sofia. Thomas, por pouco, não ficou surdo, assim como Felipe, só que esse já estava agarrado à cintura da mãe.

– Dwinler da luz, nos acuda! – berrou Ophelia, somente com o rosto laranja visível graças à chama. – O quê aconteceu?

– Nadjo, Laura, Guido, estão todos bem? – perguntou Rosana, tentando ficar calma. – Deve ser o mecanismo do primeiro andar. Deve ter saído do lugar e parado de rodar.

– Também estou aqui! – falou o cocheiro.

– Venha Fred! – Ophelia o chamou, segurando o braço do homem. Na hora do medo todos eram mais íntimos.

Guido, com um dos lampiões na mão, agachou naquele armário de vassouras para pegar mais um e entregar a Nadjo. Foi nesse instante que ele, ao tocar na corda presa na cerâmica, reparou que o armário se estendia, e que eles estavam num quarto. As paredes perto deles eram nada mais, nada menos, que grandes mesas empilhadas e disfarçadas. O menino ainda viu, em questão de segundos, a outra parte do cômodo, que mais parecia ser escondida, tinha desenhos e textos em papéis pregados em todos os cantos. Ali não havia mais espaço para um quadro sequer.

O que seriam aquelas coisas escritas? Seriam alguns Certeiros antigos da família? Esperto, o menino, ainda agachado, logo reparou que as folhas de papel não tinham sofrido com a ação do tempo e estavam novas, com a exceção dos desenhos de monstros bizarros e enigmáticos, além de discos voadores cheios de engrenagens. Guido conseguiu ver tudo perfeitamente em menos de dez segundos, e ele ficou bem confuso, porém não achou necessário contar nada a alguém.

Um vento passou por trás deles.

– O que foi isso? – perguntou Laura, ao olhar para Thomas com o fogo do lampião aquecendo o rosto.

– Deve ser uma corrente de ar. – disse Nadjo, não acreditando nele mesmo.

Todos eles logo se entreolharam.

– Não acho que seja uma corrente de ar. – falou Ophelia, mais próxima deles e agarrada aos meninos.

– O que acha que pode ser? Um fantasma? – ironizou Felipe, grosseiro como na maioria das vezes.

– Esse é realmente o seu filho, sra. Guinard? – a gordinha falou para Rosana, apontando o dedo ao garoto. – Não me parecem iguais psicologicamente.

– Psicologicamente? Ah, por favor, se for falar de mim fale direito. – dizia ele. – Não sabe nem fazer alguém se sentir mal.

– Não era essa a minha intenção. – Ophelia esticava o pescoço para frente ao falar com tom de superioridade.

– Já que não era sua intenção, devia ter ficado calada.

– Fiquem quietos! – mandou Guido. – Vocês estão sentindo?

– Acho que estou, – confirmou Thomas. E então falou baixinho. – são passos, não são?

– Sim, são. – o garoto sussurrou. – Alguém precisa ir lá embaixo e puxar a alavanca novamente. Alguém se habilita?

– Eu vou com Luka e Sofia – Felipe voluntariou-se.

– Então vai lá, valentão! – cochichou Ophelia.

– Vá sozinho! Não vou descer nessa escuridão. – Sofia impôs-se.

– Tanto medo pra quê? Já viram que tudo aqui perto é bem seguro. – o garoto disse, virando-se contra as luzes dos lampiões. – Já volto, mesmo achando que devíamos ir todos juntos, o que seria justo.

Felipe queria mais é se mostrar, mesmo o medo lhe assombrando até os dedões dos pés. Ele desceu as escadas com as sombras se formando em sua frente a cada passo, como se elas aparecessem somente para causar terror. As silhuetas dos lençóis surgiam gigantes nas paredes, e, por um momento, o pânico lhe invadiu a mente quando a imperfeição escura o havia lembrado do metalitus que os atacou na floresta meses atrás, era parecidíssimo.

O garoto andava lentamente e estava atencioso com cada canto e movimento que lhe era suspeito. Ele sentiu uma respiração em suas costas, e temeu ao virar, porém não se recusou. Era Luka na altura de sua nuca, tão apavorado quando o menino. Contudo ele realmente escutou o bater de um pano e um ar passou entre suas pernas, deixando as calças congeladas. Alguém correu para o outro lado tão rápido que nem ele pôde acompanhar.

– Mãe… – ele choramingou, espremendo-se em seu próprio metro quadrado como um bebê com frio e amedrontado.

– Ele vai ficar bem, não vai? – Sofia perguntou quando, aparentemente, havia se arrependido em tê-lo deixado ir sozinho. – É só uma casa. E eu estou apavorada.

– O único medo que devemos ter é de nos machucarmos ao esbarrar em alguma mesa. – falou Rosana, bem duvidosa.

Laura viu um vulto passar encostado atrás de Sofia, e as duas gritaram.

– VOCÊS VIRAM? – a menina apontava para a amiga.

– EU SENTI! LEVANTOU MEU VESTIDO!

– Vamos sair daqui, por favor! – sugeriu Ophelia. – Vocês querem nos assustar.

– Eu não estou brincando! – rosnou Sofia, quase chorando, e em seguida segurou a mão da gordinha. – Olhe, estou tremendo. E ainda devo estar tão branca quanto um cadáver.

As luzes voltaram a reluzir pelo Instituto Flintch. Felipe havia puxado a alavanca que fazia as engrenagens rodarem como loucas. Tudo sem algum tipo de aparelho ou princípio científico que usasse bateria, apesar de ser um equipamento bem bolado que não fazia a luz acabar por meio de atrito das pedras Kespentate que lá se encostavam. O menino olhou para trás e encarou o salão principal cheio de lençóis brancos erguidos sobre algum objeto, que realmente pareciam fantasmas. Quando viu que só tinha a companhia de Luka, correu depressa, gritando para o esperarem.

No segundo andar todos estavam bem, nada fora do comum havia acontecido, embora todos permanecessem alarmados e acovardados com a desconhecida corrente de ar, a qual teria levantado o vestido de Sofia. As meninas podiam jurar que era alguém.

Felipe chegou esbaforido. Luka, escondido embaixo de seu casaco, tentava respirar e suava frio. Eles continuaram andando pela mansão com os lampiões em mãos, mesmo com a luz dourada iluminando tudo muito bem. Thomas, intimidado como todos eles, tirou a luva do bolso e a vestiu, receoso de que fosse preciso em instantes.

Adentaram o primeiro quarto que encontraram, que não era enorme e cujo acúmulo de poeira era tão grande que estava quente, como se lá houvesse um aquecedor em funcionamento.

– Melhor ficarmos aqui. – disse Rosana, com um lampião na mão e a cortina na outra. Ela olhou o lado de fora da mansão. O jardim estava bem iluminado por conta da luz que saía pelas janelas abobadadas e compridas. – Amanhã mostro o resto da casa. Tenho até que lembrar onde cada cômodo fica.

– Vamos dormir aqui? – Frederico deixou as malas no chão e apontou para os colchões de tecido emiliano que lá estava esticado para eles.

– Só escolher um, deitar e dormir. – disse a mulher. – Nesse quarto caberá todos nós, e é melhor ficarmos juntos caso aconteça alguma coisa.

– O que poderia acontecer? – indagou Felipe, já sentado no colchão. Guido e Ophelia também o fizeram em outros.

– Ao mesmo tempo que conheço esse lugar, eu o desconheço, afinal, há muitos anos que não o vejo. Não sei o que pode ter por aqui.

– Obrigado, mãe. Estou mais calmo. – ironizou.

Eles abriram as malas e retiraram os cobertores, entre alguns espirros. Jogaram-se nos colchões como bonecos tacados por crianças mimadas e caíram no sono, mesmo com as luzes tremeluzindo. O medo de que alguém não convidado entrasse no quarto não era maior que o cansaço. Laura, Sofia e Felipe demoraram a dormir por esse motivo. Deitados, eles olhavam ao seu redor, com o temor fazendo seus corações baterem como caixas ocas ao serem esbofeteadas com raiva. Após poucos minutos seus olhos já se reviraram e eles também dormiram.

Pela manhã a história foi outra. A noite de sono pesado fez os garotos retomarem a energia perdida no dia anterior, tomada pelos belos momentos que somente verdadeiros aqualaestes podiam sentir. A ejámule seria um bom exemplo disso. Eles estavam em dia com o sono, e, mesmo dormindo em colchões velhos e empoeirados, a dívida foi quitada com sucesso.

Thomas esfregou os olhos quando acordou. Havia remela presa nos cantos. Ele sentou, de cabeça baixa, evitando a luz que penetrava na cortina. O dia parecia estar bonito lá fora, mas, em contraste, o garoto estava todo engraçado com o cabelo para cima, como se um vendaval tivesse passado.

Ele desceu as escadas com os olhos apertados e se deparou com todos os objetos à mostra, os mesmos que, na noite anterior, estavam cobertos por lençóis. No meio dos degraus ele parou. Avistou alguém sentado numa cadeira abaixo do mezanino no segundo andar dentro da mansão. Ali, no canto do salão, era Orivundo de braço enfaixado e Ophelia agachada conversando com o pai. Quando o grande homem viu que Thomas havia acordado e estava na escada o olhando com ansiedade, tratou de sorrir.

O garoto desceu os degraus depressa e correu entre as mesas, relógios de chão e estofados que estavam espalhados acima do tapete vermelho. Ele nem se importou se a poeira sujaria seus pés descalços, pois somente queria entender a razão do sorriso de Orivundo. O menino correu para a porta aberta mais próxima dos Gualli, de onde saía a forte luz do dia. Thomas, no segundo em que entrou naquele quarto, viu, do chão ao teto, uma janela de vidro imensa, cheia de arcos e nervuras com pinturas antigas. Estava aberta e dava para a grama do jardim, de onde entrava uma brisa gostosa. O menino olhou uma grande cama e todos os seus amigos ao redor, incluindo o velho Lutile sentado na beirada. Ele cuidava de Haydee, cujos olhos, já não tão inchados, encontraram os do sobrinho. O menino não esperou nem um instante para correr e pular na cama.

Não houve alguém incapaz de não se emocionar, e eles riram para disfarçar as lágrimas de alegria.

Thomas, com a cabeça no travesseiro ao lado da tia, tocava no rosto machucado na mulher.

– Você está tão lindo. Um homem tão crescido… – Haydee teve o rosto molhado de felicidade.

– Prazer, eu sou Thomas. – ele brincou, rindo de orelha à orelha e de mão aberta para que ela a apertasse.

– O prazer é todo meu. – sua tia riu.

– Isso não é lindo? – falou Sofia. Luka flutuou com um lenço na mãozinha, oferecendo-a.

O coração de Thomas irradiava força, alegria e amor, assim como o Sol iluminava a Terra. Os sentimentos estavam à flor da pele e aqueciam cada gesto e palavra como se fossem únicos, como uma tarde de verão, onde cada minuto de sol é singular, porém repetidos durante toda a estação.

Capítulo 7 – Os peixes da terra.

“Quando a erupção aquática tiver início, prepare-se, Yalay. Salte como um rapko com regozijo, pois a exaltação guardada pelos cordados em uma estação inteira, explodirá na ejámule. Um campo minado a terra se tornará, assim como nossa vida nessa sociedade medíocre, intolerável ao nosso amor interracial.” – Um berço em outro lado. ALLANO, Wakenah. 1º volume. Cap16 pg 77.

TODOS JÁ HAVIAM ACORDADO no hotel Yerlek, pelo menos aqueles que acompanhavam o descendente de Phoerios. O frio estava intenso na varanda do primeiro andar, e lá, numa cadeira esculpida do tronco de uma amanduyecteira, estava sentada Crintyk.

A cervuni olhava o céu frio e claro, como quem estava fisicamente naquele mundo, mas a mente viajava em suas próprias histórias passadas. Ela não parava de pensar em Thomas, ficava imaginando se ele conseguiria salvar seu pai. Seus pensamentos que lutavam contra o cansaço de um dia cheio de brigas no bar, a faziam lembrar de quando era criança. Seu tutor havia morrido com uma lança na cabeça. Contudo, o melhor pai que ela teve na vida foi o diretor de um orfanato cervuni.

O tutor humano, apaixonado pela filha de outra raça, não sobreviveu a um dos ataques meonan em Émi’Lian. Ela nunca mais esqueceu o rosto em prantos do homem o qual mais amou na vida. No dia de sua morte, ambos rastejavam na terra morna e úmida da Guerra dos Eloupes, cuja batalha foi de cunho inteiramente capitalista. Cinco províncias lutavam bravamente ao lado da honra para conquistar terras naquela época. Contudo, a guerra serviu de brecha para um dos aliados de Meon. Houve um espião que atuou como ministro dos Eloupes, aqueles que tratavam das trocas de pedras preciosas entre os governos. Aliado de Tertius, mandou atacar. A guerra acabou com centenas de mortos por corsarius, inclusive o pai de Crintyk. Ela, na frente do senhor, sentiu-se culpada em tê-lo chamado para abraçá-la naquele momento. A lança, que era para ter acertado o chão de terra na chuva, atingiu seu tutor, e aquela foi última vez que ela o viu. Os olhos vidrados de seu pai, no instante de sua morte, deixaram a luz da vida e, somente com os movimentos dos lábios, a chamou de filha e disse que a amava.

Crintyk se arrependeu de ter fugido de casa naquela noite. Ela, durante todos esses anos, imaginava se, caso tivesse ficado na cama enquanto as bombas explodiam no lado de fora da casa, seu pai teria voltado. Ela guardava todos esses pensamentos para si. Não queria que ninguém soubesse de nada, principalmente um garoto como Thomas. Ela não queria contar ao menino que a história dele havia lembrado a dela, principalmente porque eram situações bem diferentes, mas que podiam ter o mesmo fim. Contudo, Crintyk não queria fazer Thomas se importar, ou fingir se importar, com a história de uma cervuni dona de bar. Apesar de esconder nas ardentes artérias do coração de uma filha entristecida, com o passado que até então condenava, ela queria mostrar para o garoto a verdade: a vontade e a bondade que ela o desejava em sua conquista, pois com pouco contato ela já tinha encontrado em Thomas as forças que ele tinha dentro dele. A cervuni sabia que ele precisava para salvar sua família, e ela o daria todo o apoio possível.

Felipe e Frederico saíram da porta e se depararam com um dia inspirador pela manhã. O garoto segurava as malas e tinha Luka voando acima de sua cabeça, seguido da potuca Meydrana de Crintyk.

– Ela não quer nem mais saber de mim. – brincou a cervuni, ao se levantar da cadeira e ir em direção ao garoto para ajudá-lo com as malas.

– Não precisa. – ele falou, sorrindo. Em seguida, fitou os potucos. – Eu acho que o Luka gostou dela.

– Bem, eu tenho certeza de que ela o adorou. – disse Crintyk, ao pegar a potuca no ar e a colocar sobre o seu ombro. – Fique aqui mocinha.

Laura também saiu da porta bocejando e com muita cara de sono, afinal foram menos de quatro horas na cama e nem tempo de sonhar direito foi possível.

Uma outra cervuni trazia, pelas rédeas, os peixes que carregavam a carruagem. Ela os deixou bem na frente da varanda e subiu os cinco degraus para falar com Crintyk.

– A senhora deve dormir agora. – ela falou, esfregando as mãos para se aquecer. – Eu e as meninas cuidaremos de tudo.

– Já vou, Perveryte. Vou me despedir dos garotos e entrar.

– Sim, senhora. – ela disse, e virou-se para Felipe, Laura, Sofia e Thomas. Guido, Ophelia, Nadjo e Rosana já estavam descendo. – Boa viagem para vocês.

Os meninos agradeceram e, com a ajuda de Crintyk e Frederico, colocacam todas as malas na carruagem. Já estava na hora de partir. Todos, em poucos minutos, já estavam embarcando. O cocheiro, na suspensão, mandava beijinhos para a cervuni, que estava muito mais preocupada em dar as últimas palavras com Thomas do que retribuir os amores vindos daquele bêbado.

– Menino, preste atenção, – ela disse, apoiada na janela da carruagem. – você vai conseguir tudo o que deseja. Eu acredito que vai. Ter um pai como o seu que, com a ajuda da mulher que amava, construiu um lugar para salvar vidas, é a maior benção que uma criança pode ter.

O garoto acanhou-se e sorriu, tão emocionado que poderia derramar uma lágrima. Ele sabia que falava sobre o Instituto Flintch.

– Obrigado – ele disse.

– Agora vá e salve a vida do seu pai. Honre-o retribuindo o cuidado que ele teve com tantas outras vidas e, acima de tudo, honre o sangue de Phoerios.

– Obrigado… de verdade! – o menino enfiou os braços pela janela e abraçou o pescoço acasacado da cervuni. – Agora, antes de ir, quero contar um pequeno segredo.

Crintyk ficou com as orelhas pontudas atentas e as antenas, que até então estavam caídas, ficaram em pé. O garoto falou baixinho:

– É só você elogiar meus pais que você terá todo o meu carinho em suas mãos.

– E por quê isso é um segredo?

– Porque se não fosse, meus amigos se aproveitariam disso. – falou Thomas, e sorriu. A cervuni cor de aspargo também o fez, mostrando um sorriso de fibras de vassoura ao invés dentes.

– Boa viagem. – ela se distanciou e deu adeus com os três dedos bem esticados.

A carruagem andou, e em pouco tempo já estava na estrada para o Instituto Flintch. Os garotos ficaram bem calados enquanto andavam sobre rodas grandes. Ninguém gostava de conversar de manhã, era muito de um ser humano ter que abrir a boca com um bafo bem intimidador e arrumar qualquer assunto para socializar. Eles poderiam fazer isso depois. Enquanto Ophelia, Nadjo e Guido olhavam para a paisagem ao lado de fora, Thomas escondia seu bafo para que Laura não percebesse, e ela tampava a boca ao olhar para ele. Já Felipe se importava com o que Sofia achava dele, mas o sono era mais importante, e ele dormiu de boca aberta. A sorte do garoto foi que Sofia também havia caído no sono.

Pouco tempo se passou e a carruagem tremeu. Alguma coisa acontecia. Thomas olhou a janela e viu os troncos passando rápido pelos seus olhos. Os corais também estavam quietos nas raízes das árvores, aparentemente nada anormal. O garoto olhou as rodas da carruagem. Elas tocavam na neve e ficavam suspensas no ar com tamanha velocidade, mas aquilo parecia ser normal.

– O que houve, Thom? – Laura o puxou para dentro, assustada com a preocupação do menino.

– Não houve nada. – ele disse, com a testa franzida.

– E que tremor foi esse?

– Também não sei. Deve ser impressão nossa.

Segundos depois, a carruagem sacudiu por pouco tempo, e o cocheiro gritou do lado de fora:

– É agora!

– Está berrando por quê, Frederico? – gritou Ophelia pela janela.

– A ejámule vai começar agora!

Thomas, na janela, sentiu uma brisa diferente no rosto. A nova estação começava pontualmente naquela hora. Ele avistou Corsena voando perto da carruagem, mas também viu alguns jatos de água saindo da terra entre as árvores, como se o solo estivesse em erupção. O céu estava inteiramente azul, o que era difícil em Aquala, já que sempre tinha nuvens brancas entre os lençóis marinhos muito longe do chão. Porém, naquela hora, nem lençóis marinhos o céu tinha. A luz do dia ficou morna e trouxe calor para o rosto do garoto.

– Tem uma alavanca em cima de você, Thomas. – falou Ophelia, apontando para o teto sobre ele. – Puxe-a!

O menino o fez e o teto abriu, então todos eles puderam ficar em pé com os braços apoiados para fora. Felipe e Sofia também haviam acordado com os tremores. Quando todos se deram conta de que o frio estava passando, jogaram os casacos para longe e não sabiam para qual lado olhar.

Os jatos de água morna saíam da terra e molhavam a neve, que parecia derreter aos poucos. Alguns peixes também apareceram debaixo, e rodeavam os garotos. Eram coloridos e bem pequenos, mas conseguiam acompanhar a carruagem.

Thomas, com a brisa gostosa no rosto, olhou os paleones saírem dos buracos nas árvores e voarem para perto dos jatos de água, onde, logo depois, voavam como gaivotas.

– Olhem! – falou Laura, quando apontou para várias sereias que saíram pelos jatos e nadaram na neve que derretia.

Ophelia viu um bando de fadas voando e se banhando nas menores gotas que saíam da terra. Os maiores peixes azuis da província também estavam lá, e mais deles jogavam neve para todos os lados quando saíam da superfície de Aquala.

Alguns zarmos laranjas fizeram sombra nos garotos quando voavam acima deles. Tudo estava fresco e o calor vinha na medida certa. Eles tinham sereias penduradas nas janelas e mandando beijos até para Frederico, que estava bem carente.

– Olhem lá! Olhem! – gritava Nadjo, sorrindo e apontando para alguns animais que pulavam da água no piso, pois, naquela hora, a terra de Longamínis estava alagada, mas não era um alagamento qualquer. A superfície era cristalina e transparente, de uma forma que eles podiam assistir os peixes nadarem serpenteando na água.

Corsena voava, mergulhava e emergia, sempre ao lado da carruagem que boiava mas era puxada pelos peixes. Thomas sentou no estofado e viu a sereia Pisínole segurando-se no vidro da janela. Ela falava alguma coisa para Laura.

– Não é a coisa mais linda que já viram? – berrava Nadjo, em pé. O garoto, filho de religiosos, nem acreditaria na notícia que a sereia trazia.

Quando Thomas aproximou-se de Laura para saber o ocorrido, a menina falou:

– Você nem acredita no que Pisínole veio nos contar.

– Arrumou uma informante? – brincou o garoto, eufórico pela beleza que os cercava fora da carruagem.

– Mais ou menos isso. Eu confio nela. – a menina falou, um tanto séria. – Thom, os Gukpuk estão convidando thonzes para comparecerem ao Castella Hondeias. Isso não é estranho?

– Bastante. – falou ele. E a puxou para continuar a ver o espetáculo que a ejámule apresentava.

– Muito obrigada, Pisínole. Por favor, me mantenha informada.

A sereia pulou para a água transparente que alagava os bosques, junta ao cardume de outras que se deleitavam com cada pulo nos lençóis aquecidos. O jatos eram ainda mais intensos que antes, e os peixes que saíam deles eram ainda maiores.

Felipe apontou para as focas que nadavam ao lado deles. Na verdade não eram focas, mas pareciam muito. Com três vezes o tamanho de uma comum e corcovas triangulares nas costas, elas eram do tamanho da carruagem. Nadavam de barriga para cima e jorravam água em Sofia. Felipe a fitou, com medo da reação da menina. Ela olhou para o próprio vestido de algodão enxarcado, e tocou o cabelo molhado. Com o calor do momento e o vento no rosto, Sofia riu e não se importou.

Luka saiu de trás da cabeça de Felipe e voou com os zarmos há poucos metros acima deles. Todos riam do que estava acontecendo, até Guido, que estava chateado em deixar sua avó, se divertia ao participar da animação na carruagem. A sra. Guinard era a única que permanecia sentada e lendo “Agitos de Amor”, romance de seu autor preferido, Golfine Gallardi. A mulher sentia nostalgia ao lembrar da sua primeira ida a Aquala ao lembrar da primeira vez em que conheceu a ejámule. Aquele livro ela tinha desde a adolescência. Agora, o que ela não percebeu, era o fato de seu filho ter subido o teto e sentado com as pernas para o lado de fora.

– Volte já para dentro, a graça acabou! – gritava Sofia, de cabelo enrolado e para frente do ombro.

O nível de felicidade e loucura em Felipe havia chegado ao máximo, e ele pulou nas focas, onde permaneceu montado.

– Ele está maluco! – Laura riu, assim como Thomas e os outros. Guido e Nadjo fizeram o mesmo. Com uma perna de cada lado, eles tinham a superfície da água batendo nos joelhos, e seguravam numa das corcovas triangulares.

A foca de Felipe virou de barriga para cima, e o garoto ficou imerso, de cabeça para baixo. Ele viu bem os corais e anêmonas que antes eram parte da floresta. Naquela hora, eles eram parte do maior lago o qual já viram, aquele que cobria o bosque todo e que tinha menos de 4 metros de profundidade.

– Dane-se – falou Sofia para si, e pulou na barriga azulada da foca. Quando o animal virou novamente, Felipe segurou seu braço. Ajudou a garota a subir e a montar atrás dele.

Thomas e Laura riram como se todos os problemas deles tivessem acabado, e com aquela sensação de liberdade e o sopro fresco no rosto do casal, eles se abraçaram. O garoto segurou-a por trás e encostou seu rosto no dela. O queixo encaixou perfeitamente no ombro da menina e ele falou em seu ouvido:

– Só está tudo tão lindo porque você está na minha frente.

Ela olhou bem perto nos olhos dele e o beijou com vontade na boca.

– Olha o romance! – gritou Sofia, atrás de Felipe. A foca onde os garotos montavam permanecia ao lado dos peixes que puxavam a carruagem. Nadjo, Ophelia e Guido, também em cima de outros animais marinhos grandes e que tinham caudas que serpenteavam na água, acompanhavam a beleza de Aquala com gritos de alegria e vários cardumes que os envolviam na superfície. A euforia na carruagem e ao seu redor não parou por muito tempo. Passaram por um recife de corais que chegava a emergir da água, e a carruagem seguia, não encontrava vontade para parar. Mesmo com eles em movimento, não houve motivos para não aproveitarem a infância que ainda devia existir.

De longe, acima dos zarmos que voavam sobre eles, os thonzes corriam nos galhos das árvores de trinta metros de altura e podiam sentir as vibrações maravilhosas que vinham daquele pequeno veículo à tamanha beleza que os cercava. Nada era tão bonito quanto os jatos de água e os seres de Aquala os seguindo. Somente uma coisa poderia disputar com aquela beleza, o sentimento que Thomas e Laura tinham um pelo o outro.

___________

Na floresta norte, Baltazar se escondia entre as raízes que nasciam do solo. As árvores estavam agitadas e os pedaços de gelo caíam nas poças que haviam formado. As folhas, ainda que frias, estavam vivas, e o vento nos galhos as jogava no ar.

Haydee permanecia viva na garupa do animal, mesmo jogada como uma morta. Muito acima dos topos das árvores, os discos voadores caçavam tanto Balta quanto Lutile e Orivundo. Os meonans sabiam que o tigre estava com a mulher. Eram vigilantes que se negavam a desistir de encontrá-los.

Baltazar andava de acordo com o movimento dos discos acima dos galhos mais altos, escondendo-se minuciosamente. Cada vez que as patas tocavam o solo, ele se atentava a não encostar numa poça sequer. O tigre já não estava tão poderoso quanto parecia ser, talvez pela idade, talvez pelo medo de ser encontrado.

Quando a ventania causada por um disco voador no céu fez até a árvore acima deles tremer, o animal tratou de adentrar um buraco que havia entre as raízes, que mais parecia uma pequena caverna, e ficou de olho no lado de fora através da única abertura com luz. Ele, então, botou a cabeça peluda para fora e caçou Lutile e Orivundo, mas não houve sinal deles. O tigre abaixou, pôs Haydee no chão sombrio abaixo da árvore, e continuou à procura dos companheiros, até que olhou entre as folhas dos galhos que cobriam o céu. Uma lula colossal passava entre os troncos, e acima dela, alguns Protetores de preto e usando máscaras cobertas por espinhos ao redor da cabeça, permaneciam em pé. Eles tomavam as rédeas quilométricas do maior animal voador de Longamínis.

Baltazar reparou que eles haviam passado perto demais de um dos discos. A apreensão do animal aumentou quando ele aguardou uma reviravolta na floresta, e esperou que os Protetores retirassem suas máscaras, erguessem suas capas com ventania e partissem à luta contra o disco voador. Mas nada aconteceu. Eles passaram reto.

– Por quê não está acontecendo nada? – o tigre falou baixinho para si. – Era para eles terem atacado…

– Eles quem? Os Protetores? – falou Haydee com ironia, caída no chão úmido e gelado, tentando se levantar.

– Minha amiga… – Baltazar se aproximou e encostou o focinho laranja manchado no vestido imundo da mulher. – O quê está acontecendo?

– Esses Protetores… – ela falou com repúdio. – Ouvia falar deles quase sempre, quando não estava no meu sono de dor. Ouvia a voz dos sequestradores tocando sempre nos mesmos assuntos. Não houve um dia em que não escutei essa palavra, “protetores”.

– Os meonans conversavam entre eles sobre os Protetores? – o tigre olhava fixamente para Haydee, que rastejava, e tentava ajudá-la. – Não se force muito, ainda está derrotada.

– Não! – a mulher se zangou com o raciocínio lerdo de Balta, que não costumava ter tanta dificuldade em entender. – Os meonan eram os Protetores.

O tigre ficou confuso, não sabia exatamente o que estava acontecendo, mas naquele exato momento entendeu que um grande problema fincava na vida dos longaminianos, e era para ficar.

– Gukpuk… é esse o nome do governador? – Haydee tinha dificuldade para falar, falta de ar, ânsia de vômito, tonteira, e não conseguia ver praticamente nada por conta do inchaço nos olhos.

– Sim, Blestor Gukpuk…

– Que tem uma irmã… Undilla.

O tigre entendeu que, durante todos esses anos aprisionada como serva da má vontade de almas abomináveis, a tia de Thomas havia escutado o suficiente para a depravação da mente. Ela sabia de coisas demais para a cabeça de uma aqualaeste, mesmo sendo dotada de força magníficas. Haydee tinha consciência de muitos fatos que aconteceram e que poderiam acontecer no futuro.

– Você precisa nos contar tudo. – pediu Baltazar, ainda desnorteado com a situação. Ele sabia que os Gukpuk não eram flor que se cheire, mas a descobrí-los assassinos… isso sim era o suficiente para se enfurecer. Principalmente por terem passado como fiéis governadores aqualaestes embaixo do nariz da SAECI.

O tigre voltou a vigiar a floresta e acabou vendo, sob a confusão de folhas enraivecidas numa tempestade, dois zarmos se levantarem de um recife de corais bem longe dele, onde a água não os tocava. Nas garupas estavam Lutile e Orivundo. Foi o momento certo para Balta colocar Haydee em suas costas novamente e sair correndo dali, já que voando seria arriscado.

– Por quê a pressa? – falou o tigre, ao correr com a mulher nas costas até os zarmos no meio da floresta. – Você e o sr. Gualli parecem estar fugindo.

– E estamos! – respondeu Lutile no momento em que havia reencontrado Baltazar. Eles corriam tão rápido quanto flechas. O zarmo de Orivundo parecia apostar corrida. – Não seremos capazes de derrotar o contigente dentro desses discos voadores.

– Não acha mais prudente irmos devagar e nos escondendo? – indagou Balta, veloz entre os corais.

– Talvez, mas temos que chegar no Instituto Flintch antes dos garotos. – respondeu Lutile.

– E nos deixar visíveis para Tertius? – rebateu o tigre, tentando acompanhar a correria das aves. – Não chegaremos lá se não estivermos vivos.

– Vai ser a melhor surpresa que Thomas poderia imaginar; ele chegar no Instituto e nos encontrar lá com Haydee.

Em questão de minutos eles já estavam bem longe dos discos voadores antigos de Meon. O caminho foi duradouro e quente para eles, presente divino que Phoerios os havia garantido com a ejámule. No momento certo, o tigre sentiu-se livre para voar, mesmo a qualquer instante eles poderem deparar-se com um bando de Protetores em cima de baleias pelos ares de Longamínis, porém, aquele vento no rosto de Haydee era um remédio eficaz contra o enclausuramento da moça, e eles não podiam deixar essa chance escapar.

Boa parte das terras estava alagada, contudo, até o fundo podia ser visto quando o vôo era tranquilo e a velocidade não bagunçava as águas com pequenas ondas. Algumas colinas viraram ilhas, mas boa parte das aldeias e vilas ficavam em alturas onde a água escorria para as florestas, assim as casas não seriam inundadas.

___________

A carruagem de Thomas seguia. As horas passavam depressa no meio de tanta maravilha, e todos já estavam dentro do veículo, secos pelo tempo da tarde esplendorosa e abençoados pelo sentimento de paz que aquele lugar trazia. Os tantos animais que os seguiam foram tomando seus rumos, mas os menores peixes persistiam na companhia dos garotos.

Aos poucos a água diminuía e, depois de muitas horas, as rodas traseiras da carruagem voltaram a tocar o solo sagrado de um novo lugar. Eles haviam chegado a Émi’Lian. Encontrariam outros alagamentos maravilhosos como aqueles, mas, naquele momento, estavam no começo da montanha Levigarde, um extenso rochedo que soltava jatos de água em todas as paredes de pedras, afinal, a estação ejámule não era exclusiva de Longamínis, e sim do planeta inteiro.

Enquanto Frederico lançava sons de sua boca para que os peixes continuassem a puxar a carruagem, Thomas ficava de mãos dadas à Laura, os dois sendo os únicos em pé e com as cabeças para fora. Foi o momento mais romântico que eles tiveram desde que chegaram em Aquala. Olhavam os cardumes nos ares os envolverem e a luz laranja nas nuvens surgirem no céu.

– FREDERICO! – Ophelia gritava, ensandecida, segurando um papel bem amassado. – Continue por esse caminho. O mapa mostra que o destino é no Bosque Abençoado.

A menina olhou bem o papel e Guido também aproximou os olhos dos desenhos de tinta que ela esticava.

– O Instituto é lá? – perguntou o garoto.

– É o que diz aqui. – ela apontou com o dedo gordinho os traços de onde estavam indo.

– Sabem por quê a floresta no topo da montanha Levigarde é chamada de Bosque Abençoado? – perguntou Guido, novamente. Mas não houve respostas. Eles o olharam, esperando que respondesse. Então ele disse: – Foi lá onde Phoerios apareceu pela primeira vez para uma multidão de seres de todas as raças de Aquala. Isso, obviamente há muitos Ciclos Completos. Eles seguiam os raios azuis no céu naquela noite. Vai ver o Instituto Flintch foi construído lá com um propósito, não pelo acaso.

Ninguém discordou do garoto. Guido sabia muito bem das coisas e era tão inteligente quanto Thomas. Não deixava passar nenhum detalhe. Porém, naquela hora, o descendente de Phoerios estava com os cabelos no vento da montanha amena enquanto subiam. E para lá eles foram. Acreditar eles acreditavam, viver eles viviam, amar eles amavam, mas, a partir daquele momento, Aquala permitiu que eles tivessem o poder de amar mais as amizades naquela pequena carruagem que era conduzida para o topo da montanha, onde eles acreditariam que o futuro os aguardava de braços abertos. Onde o verdadeiro amor Flintch poderia ser espalhado.

As vinte e nove horas diárias pareciam passar mais rápido que o normal. Ainda subiam a montanha Leviarde, mas sempre alguém parava a carruagem com o intuito de suprir as necessidades fisiológicas. Eles ficavam, com o passar do tempo, mais aquietados, pensativos e imaginativos, principalmente quando as memórias de suas vidas passavam por suas cabeças.

Guido, depois de alguns anos sem ver sua avó, havia voltado para casa com a ajuda de Thomas. O garoto achava que ela não acreditava no seu potencial em encontrar a Sala de Phoerios, porém, infelizmente, a senhora estava certa. Guido pensava, ao viajar olhando para as florestas através da janela, que se tivesse deixado o orgulho de lado e voltado para o Largo do Castelo antes, teria ainda ajudado sua avó com as vendas da tenda que ela tinha no mercado, além de ter ajudado a crescer a loja de fotografia.

O menino imaginava o que a senhora, que tanto o procurou, estaria fazendo naquela hora ao entardecer. Se ela estaria rezando para Phoerios proteger seu netinho, o garoto não poderia saber.

Guido não tinha ideia de como mandar ligação ulnar para a mão da avó. A senhora também não sabia. Era um poder difícil e caro por um motivo simples, somente professores que cobravam valores absurdos podiam ensinar aquela arte. Por esse motivo, Guido não esperava receber uma ligação ulnar de sua avó, mesmo olhando os dedos e torcendo para que abrissem buracos neles. O menino queria, com toda a força de seu coração, se comunicar com Eleonora. Os únicos ali que sabiam usar esse poder eram Thomas e Ophelia.

A menina gordinha, enquanto a carruagem subia a estrada montanhosa, arrumava o cabelo. Ela apontava as duas mãos em formato de concha para a cabeça e os fios se levantavam sozinhos. Não estava mais sorrindo da mesma forma que antes, mas dava o seu máximo tanto para achar alegria em cada canto obscuro de seus pensamentos, quanto para mostrar um sorriso a seus amigos. Quando os garotos só olhavam um para a cara do outro, a menina tinha o olhar vazio e distante. Ela pensava em seu pai, onde ele estaria e se chegaria bem no Instituto Flintch.

A carruagem sacudia e Ophelia, com a cabeça apoiada perto da janela, pensava até nas focas que apareceram horas atrás durante o começo da ejámule.

Nadjo, com os pés para cima do estofado, imaginava se o caminho era o certo. Não o da estrada, mas sim estar com aquelas pessoas na mesma carruagem abarrotada de gente. Eram seus amigos, mas até que ponto eles seriam os mesmos em relação a ele? O menino se perguntava se aqueles que gostava, seriam amigos tanto nas horas divertidas quanto nas mais sombrias.

Todos eles pensavam em várias coisas a todo o momento. Não tinham muito o que fazer a não ser comer e reler as mesmas revistas. Sofia já sabia de cor os assuntos da “Coques e Tentáculos”, revista preferida de Ophelia. Era de lá que a menina tirava inspiração para seus penteados exêntricos.

Laura permanecia com a cabeça apoiada no ombro de Thomas. Ele, volta e meia, passava a mão nos cabelos morenos e macios da garota. Davam um beijo e se abraçavam, mas mesmo com as horas passando e o dia entardecendo, eles não se abatiam com o tédio, pois, por incrível que pareça, podiam passar o dia sem fazer absolutamente nada, nunca seria entediante se estivessem juntos. Não só o casal, mas sim a quase todos na carruagem.

Tudo estava em silêncio, exceto pelo barulho das rodas no chão e o som das águas no lado de fora. Havia paleones voando no céu rosa, e alguns incríveis animais que os garotos podiam ver de longe, mas não descobriram o que eram. Ferterik era como se chamavam, porém o máximo que viram foram vários deles pulando como tzíkers pela floresta há quilômetros abaixo deles. Pareciam bolinhas que Felipe colecionava em sua infância, que quicavam como pererecas, só que os ferteriks andavam juntos e alcançavam alturas quilométricas. Esses animais eram insetos que se alimentavam de grama, e o faziam quando, a cada pulo, encostavam na terra. Suas bocas cheias de dentes comiam com destreza os restos de plantas que encontravam por ali.

Rosana chamou o filho para ver aqueles insetos pularem na floresta. Eles se lembraram do dia em que Lutile havia entregado a bala de caramelo que os fez saltitar de prédio em prédio até chegarem na casa de Thomas. Além da saudade do velho, os garotos também sentiam falta de um bom doce em suas bocas. Ophelia já não tinha mais em suas malas. A bolsa de mão que a menina usava somente para guardar doces Gualeis para quando a vontade chegava, já estava vazia.

Foi em um momento daqueles que Thomas, jeitoso, tirou a cabeça de Laura de seu ombro para pegar um jornal, entre tantos outros que estavam na mão de Sofia. Era o mesmo que Crintyk havia recebido do correio naquele mesmo dia. Pelo jeito, ela acabou por esquecer dentro da carruagem. O garoto pegou o papel amassado e olhou para a primeira página, onde tinha em destaque Blestor e Undilla Gukpuk, então ele abriu na matéria e mostrou à Laura.

– Não pode ser verdade, – disse a menina, quando observou Luana e Alan fotografados com o governador e sua irmã.

– Como não poderia ser verdade? – Thomas perguntou. – É o Extraqualaeste.

Felipe arrancou o jornal das mãos do amigo, louco para saber sobre o que falavam, e levou o mesmo susto quando olhou a matéria. Enquanto Laura continuava inquieta com a notícia de que os antigos colegas da Damatio estavam envolvidos com os Gukpuk, Thomas mandou Felipe observar quem havia escrito a matéria.

– William Art. – o garoto leu. – Thom, não era esse tal de William Art um amigo do seu pai?

Thomas acenou que sim com a cabeça e falou:

– Nada pode estar errado nesse jornal. E também porque estaria? Pelo que eu saiba, o Extraqualaeste é o melhor de Longamínis.

– Eu sabia que esses daí não prestavam! – intrometeu-se Ophelia.

– Todos nós já sabíamos disso, – respondeu Felipe. – só que agora eles chegaram a um outro nível.

– Só por estarem metidos com o governador? – perguntou Nadjo.

– Exatamente por isso! Nós sabemos que Blestor e Undilla não prestam.

– E sabemos que Alan e Luana também. Então para quê se preocupar? – continuou Nadjo. – Deixem que se entendam.

– Mas e se esse mal tocar Longamínis? – perguntou Guido. – Porque vocês querendo ou não, as intenções de um governador influenciam no lugar onde ele tem poder.

– Agora é rezar para Phoerios – falou Nadjo.

– Vamos rezar, e muito! – disse Laura. – Mas também vamos conseguir mudar isso. Não agora, mas quando algo chegar à população sobre os Gukpuk, teremos com o que lutar para que saiam do poder. Enquanto isso, não podemos fazer nada.

Capítulo 6 – As travessuras dos Gukpuk.

“O preconceito da raça é injusto e causa grande sofrimento às pessoas.” – Voltaire, filósofo iluminista francês.

AINDA ERA NOITE. Thomas estava debruçado na varanda gelada do hotel Yerlek, enrolado em cobertores e olhando as florestas cobertas de neve. Uma das luas de Aquala, Orèndi, orbitava tranquilamente no céu mais estrelado do universo, onde os pontinhos brancos navegavam nas ondas das luzes que se encontravam na atmosfera. Aquela grande bola laranja estava tão perto, que o garoto tinha até a sensação de que, se passasse pelo Castella Hondeias, poderia derrubar sua torre mais alta.

Crintyk saiu da porta e soltou um bafo de quem começou a congelar só de estar do lado de fora, e, mesmo com alguns casacos cobrindo o corpo esverdeado, ela esfregou as mãos nos braços.

– Menino, não fique aqui fora! – ela falou, mas logo abaixou a voz ao lembrar que todas as luzes de dentro do hotel já estavam apagadas e que havia pessoas dormindo. – É perigoso a uma hora dessas.

– Mesmo na varanda? – perguntou ele, cujas olheiras estavam pesadas. – Estamos no quinto andar.

– Por acaso você tem perda de memória? – ela se aproximou da beirada da sacada. – Um monstro o feriu gravemente há poucos minutos atrás. Você não é Phoerios. Você é descendente dele. Em outras palavras, você pode morrer, então não se arrisque muito.

– Estou muito forte, se quer saber. – ele falou de modo sereno, olhando a floresta e as colinas longínquas. – Eu me recupero de um jeito que as outras pessoas não conseguem.

– E isso o está perturbando. – a cervuni supôs.

– Mais pelos meus amigos – ele concluiu. – Eu sei que eu posso me machucar à vontade, sem muitos exageros porque, às vezes, dói muito. Mas e eles? Se qualquer coisa acontecer com eles a culpa será toda minha. Felipe é meu amigo há muitos anos, crescemos juntos e sempre esteve em primeiro lugar. Obviamente não foi o único, mas apenas ele importava. Sofia eu também conheço há bastante tempo, e, hoje, é tão importante quanto.

Thomas esfregou as mãos enquanto continuava a falar, agora cabisbaixo. – Eles estão aqui por minha causa, e se alguma coisa acontecer a eles eu nunca vou me perdoar. Eu sinto que não sou um amigo tão bom quanto eles.

Crintyk deu uma risada baixinha, e o garoto perguntou o porquê de estar rindo.

– Menino, você está precisando de um ombro pra conversar, não está?

– Por quê pergunta?

– Está soltando tudo o que quer falar, e isso é ótimo. Me sinto até privilegiada por ser confiável aos olhos do descedente de Phoerios.

Thomas deu uma risadinha tímida.

– Mas… e aquela menina? – a cervuni perguntou como quem queria chegar em algum lugar. – A morena que veio com vocês.

– Laura?

– Ela mesma – a mulher se debruçou também na sacada. – Você falou do Felipe, da Sofia, mas não falou dela.

O garoto pensou bem no que ia falar.

– Bem, eu a conheci pouco antes de vir para Aquala – ele disse, terminou, e olhou para Crintyk.

– Está me olhando por quê? – ela riu, deixando o menino mais sem graça ainda. – Prossiga, fale sobre ela.

– O quê quer saber? – ele também riu com o rosto rosa.

– Da importância dela.

O garoto ficou calado durante alguns segundos e respondeu:

– Ela é tão importante quanto os outros dois.

– Não é não. Ela é mais importante que “os outros dois”. – a cervuni apontou o dedo comprido no peito de Thomas.

– Óbvio que não! Laura é minha amiga!

– Menino, posso não parecer, mas sou bem vivida. Conheço histórias de amor muito menos interessantes. Quem você quer enganar?

Ela segurou o rostinho do garoto e o levantou.

– Estou falando isso porque gostei de você. Mostre a ela o quanto você se importa.

– Eu quero… e muito, mas estou passando por tantas coisas que seria egoísta querer ter alguma coisa com a Laura. Tenho amigos que foram para muito longe buscar uma outra pessoa que não vejo há anos. Eles estão lutando por mim, para me ver feliz. E imagina eles chegarem e eu estar de romance. Enquanto eles passam o sufoco, eu só fico com a parte boa? Não é assim que funciona.

– Você é bom em raciocinar sozinho. Devia falar para si mais vezes. – Crintyk sorriu. – Falou tudo o que eu deveria ter dito.

– Eu não paro de pensar em tantas coisas… Minha cabeça está atordoada. Primeiro é meu pai, depois são esses amigos meus que foram salvar minha tia. Tenho medo de que voltem feridos, ou que não voltem. Fico preocupado que aconteça alguma coisa com todo mundo, e principalmente com a Laura. Tenho aversão ao governador Gukpuk…

– Por quê? – a cervuni falou seca.

– Desculpe se você gosta dele como governador, mas…

– Pode falar à vontade, menino. Esse homem é o culpado de tanta agressividade que ocorre no meu bar. Quase todos os dias os tais dos Protetores quebram o que bem quiserem no primeiro andar. Se tem algo que eu quero ouvir agora, é você falar o que pretender sobre Gukpuk.

Thomas respirou fundo antes de falar.

– Quando estava no Castella, recebi uma visita de um xamã que tinha viajado de bem longe para poder me ver. Eu fiquei desacordado durante uns dias porque fui vítima de mais um ataque de Meon, e naquele dia tinha sido ao castelo. Era destroços para tudo o que era lado.

– Eu soube, li no Extraqualaeste no dia seguinte. – Crintyk disse seriamente, como boa ouvinte.

– Então, quando acordei estava intacto, e os jardins do Castella Hondeias ficaram cobertos por flores que nasciam sob a neve e cresceram depressa. Eram do meu tamanho. O xamã disse que foi um presente da minha mãe, e no mesmo ciclo menai Blestor Gukpuk e sua irmã cadavérica ordenaram que os artracóis tirassem cada flor indevida. Elas tiveram que ser arrancadas pelas raízes, mesmo com o xamã tenho uma árdua conversa com eles na torre mais alta e pedindo para que não mexessem com os espíritos brancos. Segundo o thonze ancião, quem perturbar o sobrenatural, será retrucado.

Crintyk olhava para longe enquanto o garoto contava o que lhe atormentava, e quando ela percebeu que Orèndi estava prestes a tocar a primeira montanha ao leste, pediu para que Thomas a acompanhasse até o bar no primeiro andar.

Um novo céu começou a nascer, e o frio absurdo, a desaparecer. Eles entraram e desceram as escadas.

– O que quer me mostrar? – perguntou Thomas.

– Nada, menino. Eu espero o correio chegar para ler as notícias e me recolher para dormir.

– Meu pai dizia que não era bom se deitar ao amanhecer. – o garoto passava os dedos no corrimão.

– Não tenho escolha, Flintch. É o meu trabalho, mas eu não tenho do que reclamar, eu gosto. E além disso, os meus funcionários vão acordar a qualquer instante e irão cuidar bem dos hóspedes.

As luzes do dia em poucos minutos chegariam e clareariam as paredes do bar e hotel Yerlek, mas até então apenas os feiches da ilmuninação azul do céu adentravam as escadas e iluminavam Thomas e Crintyk.

A cervuni abriu a porta do primeiro andar e se deparou novamente com uma visão calma, congelada e branca.

– Esse pessoal, dos correios, é bem pontual. – ela disse, de braços cruzados, enquanto a fumaça saía de sua boca a cada palavra. – Já sei de cor que cinco minutos depois que Orèndi passa pela montanha leste, eles entregam o jornal. Olhe, já vai chegar.

Um pouco longe deles havia uma poça que não estava congelada. Na verdade, ela se chamava Correntilesse, e era um rio. Propriedade dos correios. Esse rio era o único que passava por Longamínis inteira, e estava em cada cantinho.

Thomas viu somente uma poça d’água ao redor dos arbustos cobertos por neve. Era como um pedaço do rio congelado que estava quebrado. O garoto percebeu que a correnteza era muito forte abaixo do gelo, e quando ele menos esperava, uns rolos de papel pesado saíram da água com tanta velocidade e força que pareciam jogados por arremessadores de baseball imersos no gelo. Os rolos bateram num balde preso na parede da varanda ao lado de Crintyk, que logo os tirou de lá, mostrando o costume que já estava em sua vida há anos.

– Teria como ler as notícias para mim? – ela entregou o jornal e a revista a Thomas. – Enquanto isso vou até a garagem tirar a carruagem.

Ele a seguiu pela neve, lendo a manchete do Extraqualaeste, que estava em letras tão grandes que só faltava pular para fora da página.

– “Gukpuk implementa nova lei”.

– Isso não é novidade, não é mesmo? – falou a cervuni. Deu para sentir indignação em sua voz. – Já sabemos que ele quer levar essa história de fazer novas leis diariamente adiante. Se quiser ser um bom político, que tal acabar com os problemas e parar de inventar outros?

– Acha que ele está fazendo errado? – Thomas a olhou, duvidoso.

– Esse homem não presta. Vá por mim. Nunca erro nos meus palpites. – ela parou na frente do estábulo e levantou os braços acasacados.

– Tem também outras notícias de primeira página… – o garoto falava, enquanto o portão de madeira levantava e mostrava a água do piso ao teto com a carruagem dentro. Ele lia. – “Poeta, jornalista e criador de potucos, morre o escritor do novo hino de Longamínis, Jarvirone Lasfy.”

– Algo de mais interessante? – Crintyk trazia, através de poderes, a carruagem e os peixes que a puxavam, para fora da água.

– “Empresas lapidadoras de zarédias disputam o comércio com a pioneira Marktna L.C”. “Assalto no Salão Prontal mexe com os cidadãos do Vale Menecau”. – Thomas endireitava o jornal com as mãos, para que conseguisse ler sem rodeios. – Vou por na página do governador.

Crintyk esperou, em silêncio, o garoto achar a notícia e começar a tagarelar. Enquanto isso, a água da carruagem escorria e os peixes, arredios, se acostumavam novamente com o frio.

– Achei! – o garoto falou. – “Na noite de ontem, o governador Blestor Gukpuk e sua irmã, Undilla, divulgaram para a redação que a nova lei proibirá o contato direto entre humanos e as outras raças. Gukpuk ainda afirmou que a nova lei tem o intuito de ajudar a população, uma vez que cada espécie tem forças diferentes e são perigosas juntas. ‘As punições para quem for contra, serão severas’, disse ele aos repórteres William Art e Lia Caputo, durante entrevista.”

– Que homem desumano. – afirmou Crintyk. – Ele é filho de Tertius, filho do mau! Como alguém pôde fazer isso? Existem famílias de cervunis e humanos. Blestor Gukpuk é um ser desgraçado! – ela se descontrolou e se apoiou na carruagem, mantendo-se em pé e lutando contra a raiva que a deixava abalada. Thomas a olhou com todos os seus sentimentos nos olhos. O garoto sentiu naquele mesmo instante que suas mãos estariam atadas e ele, impedido de agir. Continuou, um tanto aturdido com o que havia acabado de ler.

– “Como parte cultural longaminiana, o governador teria direito a um conselheiro. O prodígio de Blestor Gukpuk chama-se Alan Palani, é um corredor de zarmos e vencedor de vários troféus. Para os leitores que não sabem, o papel dos conselheiros é ajudar o governador em suas decisões, e o fazem com a purificação das ninfas da floresta, que dão poderes de visão. Undilla Gukpuk também ganhou uma conselheira, a menina Luana Roans Lopez, filha do milionário Augusto Martins Lopez.”

Naquele momento Thomas teve que reler para acreditar. Seus antigos colegas de escola estavam metidos nos assuntos de política da família Gukpuk. Eles eram realmente quem pareciam ser, dois monstros.

_______________

Ainda naquela madrugada, o Castella Hondeias parecia estar intacto. Tudo estava tão sereno quanto deveria. As tochas iluminavam os jardins de neve e suas chamas chegavam a fazer barulho de tão ardentes. Os cristais de gelo nas árvores cintilavam os ouvidos no silêncio e apaziguavam os corações raivosos. Contudo, Blestor não estava no jardim e sim em sua cama. Ele se sentia mal, gostava de estar assim. Não pelo fato de ser um homem normal, porque ele não era. Ele era um servente, um escravo que gostava do serviço. Um serviçal vagabundo que carregava na alma o peso da amargura, mas a incessante vontade de cometer barbaridades.

Gukpuk acordou com um som tão agudo que parecia baixo, e acordou. Não houve susto ao abrir os olhos, pois ele já sabia o que aconteceria. Tirou o cobertor vinho aveludado de cima e sentou na cama. Um braço lhe estendeu um hobby de mesma cor. Ele olhou e viu vários homens ao redor do quarto, todos de preto até o piso de mármore e máscaras de porco espinho no rosto. Eles estavam parados e o vigiando, iluminados pela luz da noite que atravessava a janela. Então, Blestor sorriu, pôs os pés no chão frio e vestiu o hobby. Escoltado por seus guardas, ele andou até a abertura de porta dupla abobadada de seu cômodo e ela foi aberta para que passassem todos juntos. Andaram calmamente pelo largo corredor e passaram pelas estátuas de pedra, que não eram as mesmas de quando Thomas morava lá, eram diferentes. Os olhos entregavam a verdade. O Castella Hondeias já tinha mudado um pouco.

Undilla, em seu quarto, abriu os olhos e ficou inexpressiva. Quando sentou na cama, viu uma menina bonita longe ao lado da mesinha. Era loira e vestia um roupão rosa.

– Venha cá, meu amor, – a mulher esquelética esticou o braço e a chamou. – está na hora.

A menina hesitou um instante, mas resolveu sair da penumbra.

– Estou pronta, senhora – falou Luana Lopez, amedrontada e com as mãos na frente do corpo.

Um Protetor, que surgiu misteriosamente, segurou delicadamente a mão de Undilla e a ergueu. Ela levantou como uma pluma e segurou as mãos da garota.

– Vai dar tudo certo. – ela penetrou nos olhos da pobre alma e sorriu. – Se você sofrer, não feche os olhos. Continue sofrendo. Assim será melhor.

– Senhora, – Luana soltou a mão da velha. – estou com medo.

A madame lhe deu um tapa que a fez cair no chão. O cabelo lhe cobriu o rosto, e ela, deitada no gelado piso, tocou na bochecha vermelha. Na mesma hora, Undilla passou as mãos na cabeça e suspirou, ajeitou o vestido de zarédias que usava para dormir e estendeu a mão ossuda à garota.

– Meu bem, me desculpe, – ela ainda sorria. – mas às vezes precisamos cair para nos levantar. Se você cair sozinha, eu a levantarei.

Sem entender e agindo a seu favor, a menina segurou a velha e a abraçou.

– Você pode confiar em mim para tudo. Eu estarei aqui como uma mãe. – ela segurou o rosto de Luana e tirou os fios de cabelo dos olhos e do nariz. Ela sussurrava. – Nosso maior medo é temer, meu amor. Agora me dê a mão. Eu irei lhe ensinar uma arte.

Os Protetores se aproximaram delas e as fecharam, como se fosse um círculo, e elas, no centro, foram com eles.

Undilla era uma pecadora, mas seu maior erro era gostar de pecar e não querer mudar. Ela e o irmão iriam se encontrar naquela hora, no momento perfeito para pecar, mas a única coisa que detestava era ter a obrigação de acordar cedo daquela forma. O resto ela faria porque tudo o que era para Tertius era prazeroso.

Estava tudo bem escuro. Ela e sua conselheira andavam juntas para a missão. Ela sorrindo e Luana nem tão feliz.

– Onde está aquele utensílio azul nauseante? – a velha perguntou, com sua boca fina e enrugada, ao Protetor mais próximo.

– Preferimos usar as velas, como a senhora nos mandou. – ouviu-se a voz abafada do homem atrás da máscara de porco espinho.

– Isso mesmo. Aproveite e jogue fora todos os fígados azuis desse castelo. Aquela luz me dá um pouco de dor de cabeça.

Eles chegaram em um salão redondo que era enorme o suficiente para dar uma festa para toda a população de Longamínis. Apenas havia uma luz bem no meio dela, e lá estava Blestor com a mão apoiada no ombro de Alan. Os Protetores presentes eram poucos, apenas aqueles que guiaram o governador e sua irmã. Os outros poderiam esperar do lado de fora do castelo.

– Boa noite, meu irmão. – Undilla reverenciou-se. – Estou animada e você?

– Nós vamos nos preparar para ensinar a bondade a nossos cidadãos, e não posso ficar mais satisfeito em fazer corretamente o meu papel. – ele olhou para Alan, ao seu lado. O garoto estava despreparado para ver o que estava prestes a acontecer. Tentou disfarçar o temor, sorrindo para o governador.

– Estou tão feliz em fazermos o bem, meu irmão. Isso me enche de felicidade. E ainda tenho que aturar o medo dessa vadiazinha. – Undilla olhou obscuramente para Luana. A menina prendeu a respiração e entristeceu o rosto, apavorada.

Blestor, sem expressão alguma na cara, deu passos lentos até a menina e a olhou bem de perto por um tempo, de olhos bem abertos. Ele a socou e ela novamente caiu no chão. O homem gordo virou-se para Alan e perguntou:

– Também está com medo?

O garoto respondeu que não com a cabeça e ficou olhando Luana levar um chute ou dois enquanto estava no chão.

– Querida, nos perdoe. – a velha agachou e segurou a menina pelos ombros. – Você só precisa aprender a não temer. Mas acho que agora ela já entendeu, não é Blestor? – o esqueleto com pele olhou para cima, fitando o irmão.

– Minha linda criança, agora está pronta para assistir. – o gordo Gukpuk falou e, em seguida, gritou para os Protetores. – Tragam-nos!

Deu tempo para Luana se levantar e, somente com o olhar, pedir socorro a Alan, mas o garoto não podia fazer nada. Em poucos segundos, dois homens de preto e máscara de porco espinho chegaram trazendo um aldeão humano e uma aldeã thonze que segurava uma linda e fofa criança no colo. Era a recém nascida filhinha do casal. “Por aqui, senhor” e “Que bebê lindo a senhora tem” foram duas das inúmeras frases que o casal escutou até chegar ao muro de pedra no centro do salão.

Os dois simples aldeãos se curvaram para o governador e sua irmã, enquanto eles os encaravam de forma crua.

– É um prazer estar ao lado de figuras tão importantes da nossa província! – sorriu a thonze, que tinha os tentáculos da cabeça presos numa rede, como um grande coque.

– Eu e minha esposa somos inteiramente gratos ao senhor e à senhora. É um presente que nos fará bastante feliz pelo resto de nossas vidas. – o simples homem sorria, sem graça, com os olhos molhados. – Mas queria saber o porquê, se não for abuso, de sermos presenteados com uma casa nova, além de tudo, no Largo do Castello, o lugar mais caro de se ter uma casa por aqui.

– O presente de vocês será outro. – falou Blestor, friamente. – Já que gostam tanto da sua província, ficarão muito felizes em saber que nela não existirá mais pessoas que não seguem a Lei, como o casal mais ridículo que já pisou em Aquala, vocês.

O aldeão foi jogado sozinho para trás, onde bateu a cabeça no muro com força. Ele não conseguia se mexer e nem falar.

– Gynzo? – a thonze gritou assustada e o bebê começou a chorar. – Solte-o, por favor, eu imploro!

Blestor, calado, fixava os olhos vermelhos no rosto de homem, há um metro de seu braço esticado. O gordo não parecia estar forçando muito, mas só o pobre aldeão podia sentir a dor do estrangulamento naquela hora.

Luana fechou os olhos e virou o rosto. Ela, então, pôde ter uma ideia da situação que estava envolvida, mas tudo ainda permanecia manso demais para a mente dos Gukpuk. Tudo ia piorar.

Undilla segurou, sem nenhuma delicadeza, o queixo da garota e a obrigou a prestar atenção no rosto roxo e inchado do pobre homem, que estava tendo a cabeça jogada contra o muro. O corpo todo estava suspenso no ar e o crânio sendo amassado nas pedras tão duras quanto concreto. A thonze, com o bebê em um dos braços, adentrava o desespero. Tentou tirar o marido da crueldade diante dela, onde os ossos dele já eram expostos.

– Isso é tão sujo! – falou Blestor, ainda com o braço esticado e apontado para a garganta do aldeão. – Como um humano pode pensar em ter um filho com um animal igual a você?

A thonze gritava em prantos para que largasse o marido, mesmo ele não estando mais com vida. Ela não ouvia nem o que o governador a dizia, apenas tentava salvar seu homem.

Luana olhava fixamente o assassinato. As lágrimas escorriam de seus olhos como cachoeiras, e o pescoço da menina chegava a estar molhado. Ela estava aterrorizada mas não podia dizer uma palavra sequer, pois não duvidaria que se o fizesse, seria ela com o crânio quebrado em vários pedaços.

Quando Blestor abaixou o braço, o corpo ensanguentado caiu no chão, e a thonze jogou-se para ampará-lo. Ela segurou, tremendo, a cabeça do marido pela metade. Era uma bola vermelha, molhada e murcha onde não se encontrava os olhos, nariz, boca, nada. Vários gritos saíram dela, enquanto o choro do bebê ainda invadia a cabeça de Undilla.

A irmã de Gukpuk ficou com as pupilas vermelhas e dilatadas, era o bom e antigo poder meonan que fez a thonze se calar e levantar do chão. A velha controlava todos os movimentos dela. A jovem segurou a bebê com um braço, e, com o outro, retirou a rede na cabeça, que prendia os tentáculos. Ela tremia toda porque tentava, com todas as forças, se soltar daquele maldito poder. Era a alma tentando fugir do corpo amaldiçoado. Somente os olhos diziam a verdade, o verdadeiro sentimento de pavor, medo, solidão e ódio que a thonze sentia, porém, com eles soltando lágrimas, ela olhou para Luana e Alan, que também choravam em silêncio, como pedido de ajuda, mas era cada um por si.

Undilla fez a thonze, de coração em prantos, sorrir e tacar a filhinha no chão. Naquele mesmo momento o choro agudo terminou, junto com a dor de cabeça da velha. A partir daquele instante, os olhos de Alan encheram-se de misericórdia. Ninguém escolhe nascer de um jeito, mesmo os Gukpuk achando que aquele jeito era o jeito errado. A última coisa que os meninos viram foi um ser puro de Aquala ser cortado em vários pedaços e desmontado como um quebra-cabeças de mil peças. Os tentáculos caíram no chão e se contorceram como minhocas.

– Pronto! – falou Undilla, sorridente, para Luana. – É assim que deve ser feito, minha querida. Com muito amor. Agora vamos cuidar desses machucados.

– Meu rapaz, – Blestor passou a mão na cabeça de Alan. – isso não irá se repetir, eu prometo. Pelo menos eu e minha adorável irmã não sujaremos mais nossas mãos com esse tipo de sangue. Vamos tratar de assuntos mais importantes. Não que justiça não seja importante, mas o que eu quero dizer é que a província deve seguir adiante. Os Protetores tratarão de punir quem estiver fora da Lei.

Aquela cena nunca mais sairia da cabeça daquelas crianças. Luana e Alan estariam prontos para verem coisas piores mais tarde.

Do lado de fora do Castella Hondeias, o dia começava a clarear, e a luz da manhã tocar a neve. Contudo, parecia haver uma procissão, vários artracóis andavam como sem-tetos. Eles estavam fugindo daquele lugar. Carregavam seus poucos pertences em sacolas e panos acima das cabeças. Essa raça era a “faz-de-tudo” dos aqualaestes, graças a seu modo lerdo, mas pelo menos incansável, de trabalhar arduamente sem reclamar. Os artracóis sabiam que tudo iria mudar em Longamínis daquele dia em diante, principalmente depois da chegada do jornal Extraqualaeste aos aposentos do Castella Hondeias. Com uma simples bisbilhotada na principal notícia sobre a nova Lei, eles já imaginavam o que viria pela frente. Antes de se tornarem escravos, preferiram fugir do castelo.

Erlize, a manleira humana e chefe daquele grupo, olhou para trás e deu, indignada, uma última olhada no gigantesco portão do jardim. Ela, que estava acabada e destruída por dentro, também parecia remoída por fora, graças a seu cabelo frizado no vento e a cara desnutrida e doente. Um de seus braços estava pela metade, ela o tinha perdido no dia do ataque meonan ao Castella Hondeias. Ela se amargurou em lembrar que havia perdido o braço protegendo o lugar que morou durante toda a sua vida. Era triste olhar para trás e ver que também havia perdido sua casa. Erlize se recusou a morar no mesmo castelo que o governador. Ela tinha visto os Protetores levando o casal de aldeões para o salão redondo, e teve a certeza de que já estavam mortos.

Os artracóis rastejavam suas patas quentes na neve que umedecia a pele marrom. Não tinham para onde ir, apenas caminhavam para seguir com uma vida ausente de amarguras e repleta de paz. Eles acreditavam que ir para a floresta ou para até outra província, seria o jeito mais fácil de viverem mais tempo. Apesar de serem seres honrados, eram plenamente amedrontados, e viver com medo era um jeito de morrer ainda estando vivo.

Capítulo 5 – O resgate de Haydee.

“Medo e preconceito podem ser sinais de desinformação.” – Guândaloos Finto’Malik, rei de Atlântida e ex-corredor zarminiano.

CRINTYK SE APROXIMOU, acompanhada de Meydana e de Frederico. Eles olharam para o corpo pálido no chão e a cervuni levou as duas mãos à boca, estava aterrorizada.

– Isso nunca aconteceu no meu hotel. Levem-no para o bar, precisamos reanimar esse menino.

– Vão embriagá-lo? – a sra. Guinard a olhou, embasbacada.

– Darei sopa, se quer saber, madame. No bar ainda costuma ser mais quente que no décimo primeiro andar. Venham, tragam o garoto. – apressou-se Crintyk, descendo as escadas enquanto secava as mãos no avental.

Felipe, Nadjo e Guido flutuaram o corpo de Thomas escadas abaixo, com muito cuidado. A cervuni abriu as bancadas procurando por algo, estendeu três cobertores em cima de uma mesa perto da lareira. Os garotos puseram o corpo de Thomas ali e o enrolaram para que ficasse quente novamente. O menino tinha cortes no rosto que pareciam não ser tão graves, e tentava abrir os olhos com dificuldade. As pupilas se reviravam.

– Temos que cuidar desses cortes. – Laura lançou-se na frente de todos na roda de gente em volta do garoto, e segurou sua cabeça.

– Dar-lhe comida é mais necessário agora. – falou Crintyk, e logo em seguida, veio com uma colher de pau na mão. Aproximou-se, acompanhada da flutuante potuca Meydana que segurava uma panela fervente pela alça.

– Mas eu vi aquela criatura fazer o sangue dele sair por esses cortes. Havia muito sangue – a garota insistiu, mesmo vendo no rosto de Thomas que os ferimentos não estavam tão graves quanto imaginava.

– Esqueceu que ele é descendente de Phoerios? – questionou Nadjo, inserindo-se na discussão. – Ele é mais forte do que vocês pensam.

– Esse menino tem sangue divino? – indagou a cervuni, fitando bem o garoto e quase sorrindo de felicidade. – É uma honra tê-lo aqui em meu hotel.

Cada colherada de sopa foi essencial para que, em alguns minutos, Thomas voltasse a falar. Ele já enxergava tudo normalmente e não precisou forçar a fala para que as palavras saíssem. Era como se a garganta estivesse seca e cada sílaba reproduzida fosse sair pelo nariz e não pela boca. Crintyk conversava com os garotos enquanto enfiava a colher de pau na boca do Flintch até a goela. Ela contou a história da sua infância num acampamento e como resolveram que a chamariam com o mesmo nome da deusa de sua raça.

As olheiras de Thomas estavam mais avultadas que o normal, assim como sua vontade de não ouvir mais aquela história, mas pelo menos ele conseguiu falar.

– Estou com sono, melhor voltarmos a dormir.

– Mas Tom, você tem que melhorar antes de qualquer coisa – disse Laura, segurando-o pelo rosto.

– Eu estou muito mal mesmo – o espaçoso garoto tratou de piorar um pouquinho. – Cuida de mim?

– Outro folgado… – resmungou a cervuni Crintyk, batendo a palma da mão na perna.

– Vocês viram o que era? Quem o atacou? – perguntou Ophelia. O rosto inchado era de quem havia acordado no susto no meio de um spa.

– Eu vi – impôs-se Laura, sentada e virada para a mesa onde Thomas estava deitado. – Acho que já o vi antes, mas não pessoalmente. As histórias que contam para as crianças aqui em Aquala, uma delas é sobre um bobo da corte, um funcionário de Tertius que desmembrava os jovens para entreter seu Imperador.

– Quem atacou esse menino foi o bobo da corte de Meon? – perguntou Nadjo, não acreditando que poderia ser verdade. Laura respondeu que sim.

– Temos que enviar uma carta urgente ao governador Gukpuk. – bradou Crintyk.

– Blestor Gukpuk não irá fazer nada a respeito – intrometeu-se Guido. – Thomas e eu ouvimos os Protetores que entraram por aquela porta segundos antes do bobo da corte aparecer. Eles pediram o que?

– Para que não saíssemos porque era perigoso… – respondeu Crintyk.

– Perigoso? Sim, mas eu acho que as intenções deles foram outras.

– Do que você está falando?

– Vocês não acham curioso o fato desses tais Protetores invadirem Longamínis e se espalharem pelas florestas no mesmo dia em que esse tal bobo da corte de Tertius chegou pela luz no céu?

– O que o Guido está falando se encaixa perfeitamente – ponderou Felipe. – Talvez Blestor tenha os colocado para impossibilitar que alguém, seja um aqualaeste normal ou da SAECI, impedisse que entrasse em Aquala.

– A primeira impressão que temos dos Gukpuk não é a melhor, – interveio Sofia. – mas vocês podem estar se precipitando, isso é uma acusação muito grave.

– Talvez o governador seja um aliado de Tertius, quem sabe? – vociferou Guido.

– E o que a gente faz? – perguntou Laura.

– Nada… não podemos fazer nada para mudar isso, somente a Assembléia Deltimoral tem esse poder. O máximo que podemos fazer agora é tentar dormir de novo e voltar para o nosso caminho pela manhã.

– Vamos dormir em que quarto? – a garota questionou.

– Como assim? No quarto do décimo primeiro andar – falou Crintyk, seriamente.

Não foi fácil para ela ouvir que seu hotel havia criado tantos buracos em tão pouco tempo, porém ela tentou não se exaltar.

– Vamos pagar cada centavo – disse Thomas, mais corado desta vez.

– Não quero que paguem nada. Vocês não foram os culpados, mas se o palpite de vocês estiver certo sobre o governador, ele sim irá pagar. Falo isso em nome da deusa dos thonzes e dos cervunis.

Os garotos resolveram voltar a dormir, já que não tiveram muita sorte naquela noite. O quarto dos fundos foi primordial para que tirassem um cochilo antes de voltarem para o caminho do Instituto Flintch. O cômodo era pequeno e eles tiveram que se apertar bem, afinal, era difícil para oito pessoas se acomodarem bem num armário de panelas, onde qualquer batuque era facilmente ouvido em pequenos toques.

Orivundo Gualli, Lutile e Balta estavam bem apressados entre as montanhas pálidas além do mar de gelo onde passaram a noite. Ao contrário do bar Yerlek, eles tiveram algumas horas de descanso num hotel na vila Charmity chamado Brenilós, onde as letras grandes e vermelhas ocupavam uma fachada de pedras. As escadas da entrada eram aparentemente flutuantes, o que obrigava os clientes a ter que levantar mais alto o pé, todavia após uma série de escadarias, quem entrasse encontrava vários corredores sob a luz da noite, erguidos por grossos galhos de árvores. O caminho era bambo. O teto de vidro impedia que a neve caísse no soalho, porém as plantas curiosas que lá viviam não deixavam de esticar-se nos vasos para dar atenção aos visitantes, como gatos que roçam nas pernas de seus donos.

As poucas horas de sono lhes foram satisfatórias para a corrida que já estavam enfrentando no final da madrugada. Ainda estava bastante frio, mas, pelo menos, a neve já tinha parado de cair. Quando partiram da vila Charmity, eles olharam bem para o grande relógio da alta torre no meio da praça, em poucos instantes ele marcaria o fim do inverno e o começo da ejámule.

A aurora começava a aparecer no horizonte entre os picos das montanhas, porém eles já se encontravam em campos cobertos por flores que haviam surgido sob a neve, e, perto dos limites da floresta, tinham alguns prédios antigos e casarões aos pedaços, abandonados. Lutile desceu do tigre Baltazar e esfregou uma mão na outra, avistando o que seria a fábrica Gualeis. As torres não soltavam fumaças mas sim nuvens coloridas, como se a cada segundo os restos de doces fossem soltos ao vento.

– Por quê não demoliram todas essas construções? – o velho Lutile perguntou, adentrando o mar de flores que alcançava suas canelas.

– Eu já pedi para que dessem início, inclusive contatei o ex governador Lamboríe, mas não foi viável. – respondeu o sr. Gualli, enrolando os bigodes. – Se pode perceber, a fábrica não é muito grande, tem um muro que impede invasões e um portão alto o suficiente cujas chaves apenas os funcionários possuem.

– Creio que, com o governo atual, seja ainda mais difícil de demolir esses prédios abandonados para que a Gualeis cresça. – disse o tigre, já imerso entre as flores de caules altíssimos que a cada passo pareciam maiores, e realmente eram. – Agora nos diga, Orivundo, qual desses é o hospício Lanacius.

– Trazia muito Ophelia quando ela era menor e sabia perfeitamente onde se situava, mas acho que não me lembro muito bem… talvez seja aquele casarão com as duas torres entre os escombros, aqueles que parecem um par de chifres – o sr. Gualli apontou para uma mansão cujos muros de tijolos permaneciam quebrados e o portão de metal era torto e caído, como se tivesse passado por uma invasão. Orivundo abriu uma mala que repousava em cima do rapko onde montava anteriormente. O homem de cartola tirou de lá um fígado de Chloetor que não parecia estar muito bem aceso, pois os amassos da viagem lhe deixaram achatado e enrugado demais. Gualli passou a luz azul em sua mão para Lutile e retirou outra da mala.

– Desculpe, Balta – falou Orivundo, mostrando para o tigre apenas alguns sanduíches no interior da maleta.

– Vou ficar bem atrás de vocês. – avisou o felino, quando levantou o pescoço de pêlos brancos. – Mas andem devagar, não podemos ser vistos. O que quer que esteja dentro desse lugar, poderá nos dar dores de cabeça agudas.

Então eles se apressaram para longe dos altos caules das flores e atravessaram uma rua cuja neve se amontoava entre um paralelepípedo e outro.

– Pensando melhor, acho que não é uma boa idéia usarmos nada para iluminar, – disse Gualli quando parou com os passos cautelosos. – poderão nos ver com facilidade.

– Isso se você quiser se esconder – rebateu Lutile. – Viemos aqui para levar a tia de um garoto para casa. Seria curioso se progredíssemos sem lutar.

O cheiro doce que vinha da fábrica ao lado da mansão era de uma mistura forte que chegava ao focinho peludo e causava enjôo instantâneo. As certezas de que achariam Haydee rapidamente aumentavam.

– Sanatório Lanacius – leu o tigre para ele mesmo quando avistou algumas letras desprendidas acima do portão.

– Venham, por aqui parece ser melhor – avisou Lutile, na espreita do muro que dava volta pela mansão. Baltazar e Orivundo o seguiram, carregando em mãos os fígados reluzentes. Eles encontraram escombros sobre a neve, retalhos que pareciam ser originados de explosões. A partir do instante em que colocaram os pés para dentro do jardim funéreo, os passos tornaram-se ainda mais silenciosos.

Por onde olhavam, encontravam árvores negras e robustas, mesmo que sem folhas. Os galhos secos lhes davam impressão de morte a todo o instante. Eles logo se encontraram num pequeno labirinto, onde havia paredes de folhas que chegavam além de suas cabeças. Cada um olhou para um canto e Lutile resolveu andar em direção ao casarão, porém um muro o impedia de continuar.

– Olhe aqui, meu velho, – falou Balta, apontando com a pata para um buraco entre o chão de neve e a parede de folhas. – me soa como uma passagem.

– Ande logo. – disse o senhor de casacão que batia nas panturrilhas agasalhadas.

O tigre sujou o pelo laranja ao passar ligeiro e agachado no buraco, esgueirando-se entre um galho pontudo e outro.

– Está vendo alguma coisa? – sussurrou Lutile, quase encostando a barba no muro.

– Não, nada… apenas… uns… – repentinamente o tigre soltou um rugido e várias bolinhas saíram por onde ele entrou. Elas saltavam e eram castanhas, uma porção delas. O velho caçou uma com a mão e a olhou, encarando as pernas compridas e finas do monstrinho.

– Malditos tzíkers – Gualli balançou a mão, os enxotando. – Cismam em roubar doces dia sim, dia não.

– Nunca vi algo parecido, mas não parecem ser perigosos – disse Lutile enquanto olhava o bicho de orelhas pontudas e maiores que o próprio rosto. Os olhos, bem redondos e esbugalhados, ameaçavam sair do rosto em formato de coração. O velho tacou-o para longe.

– Não são perigosos, mas irritam quando estão em grande quantidade, deixam você confuso com tantos pulos.

– Parem de falar. O caminho é por aqui! – a voz do tigre ecoou do outro lado. Orivundo tratou de aproximar a mão do muro de folhas e fez com que fosse destruído devagar, como cinzas desmoronando. Baltazar apareceu logo adiante.

O trio percorreu um corredor naquele labirinto, encontraram, por sorte, um portão dos fundos, onde esse parecia estar intacto. Quando Orivundo abriu, percebeu que estava destrancado, então colocou a cabeça para dentro e viu um extenso salão com um lustre caído, tapete vermelho e paredes de madeira negra.

– Venham. – ele os chamou com a mão, sem olhar para trás. Apenas o que iluminava o caminho era a luz azul do fígado que segurava. Eles puderam ver destroços para todos os cantos, pedaços do teto que tinha caído e partes do soalho arrancado, como se uma batalha tivesse acontecido ali.

Lutile deixou que Balta passasse sua frente e fechou a porta. Eles olharam para os cantos e viram quadros antigos. Em seguida, um grito ecoou pelo casarão. Eles se entreolharam e puderam ter a certeza de que algo estava acontecendo a alguém naquele exato segundo, e então o tigre sentiu um cheiro forte.

– O quê é? – perguntou Gualli. – Qual doce da Gualeis você sente? Picado de Murana… Baba de Lontra… Delícia Derme…?

– Não falo sobre doces, Orivundo. Esse cheiro me é familiar. A essência vinda da sua fábrica não atrapalha meu olfato, disso eu garanto.

– Então o que está sentindo, Baltazar? – questionou Lutile.

– Haydee. – o tigre olhou o velho.

Passos pesados passaram sobre suas cabeças no andar acima, fazendo a poeira do teto cair. Eram muitas pessoas apressadas e juntas. Mais outro grito foi ouvido.

Eles voltaram a andar, ainda que devagar, e já se encontravam num corredor escuro mas com luzes de tochas no outro cômodo. A luminosidade os alcançava através dos buracos nas paredes, que mais pareciam tocas de monstros selvagens.

Quando mais outros passos correram acima deles e a poeira invadiu o local, Balta teve a certeza de que estavam no caminho certo. Ele seguiu a movimentação adiante.

– Me sigam, Haydee está por aqui. – disse o tigre, e andou mais rápido, farejando o ar. Eles andaram rápido, sorrateiramente, aproveitando o tamanho barulho no andar de cima, porém surgiu alguém na frente deles, então, tiveram que entrar no primeiro buraco que encontraram. Naquele momento esgueiraram-se para um banheiro imundo cujas paredes faltavam azulejos e os vasos estavam caídos. O chão estava cheio de farpas e grandes pedaços de espelhos. Eles precisavam de cautela para que seus passos não denunciassem onde estavam, já que a água gelada da pia invadia seus calçados.

Lutile tirou do casaco um par de máscaras de madeira. Ele pôs uma e a outra ofereceu para Orivundo.

– O quê é isso? – sussurrou o indignado tigre quando viu o sr. Gualli ser presenteado.

– Me desculpe, Balta. Não adiantaria manter sua identidade coberta. Os pêlos e as patas o delatarão. – explicou o velho Lutile.

– Silêncio. Ouçam… – disse o felino quando viu um vulto passar pelos destroços no corredor. O tigre, assim como os outros dois, viu uma criatura aparentemente humana, mas quando a poeira baixou eles puderam ver que não se tratava de uma pessoa. Era um humanóide que tinha patas como as de um dinossauro, três dedos em cada mão que seguravam lanças e um cérebro avantajado para trás da cabeça, onde havia veias bem expostas. Vestia mantos de couro e tinha o corpo coberto por fungos.

Corsariu. – o tigre respirou bem fundo. Teve que deixar o monstro passar para que desse mais um pio. – É a pior espécie que alguém poderia inventar. São capangas de Tertius.

– Como sabe disso? – perguntou sr. Gualli, baixinho e usando a máscara de madeira.

– O pai e a mãe de Thomas já lutaram contra eles. Foi numa batalha dessas em que a pobre Sandra Flintch morreu tentando salvar o filho.

– Então vamos matá-lo? – Orivundo apontou para o grande buraco na parede, onde o corsariu havia acabado de passar.

– Vamos encontrar Haydee primeiro, depois nos resolvemos. – esclareceu Lutile.

Eles olharam para os dois lados e voltaram para o corredor, que logo depois desembocou num outro salão com duas escadarias para o andar acima deles. O tapete estava mais escuro do que eles imaginavam, e levava para cima dos degraus de pedra. Ao redor deles havia mesas e cadeiras amontoadas umas sobre as outras, ao lado de sofás com molas saídas do estofado, jogados como se fossem objetos de qualquer mausoléu.

Da beirada da corrimão pareciam descer outras criaturas apressadas, suas sombras chegavam até os degraus da escada. Lutile sussurrou para que Orivundo enfiasse o dedo no fígado de Chloetor, então ele o fez. Instantaneamente, a aurora azul que os rodeava se apagou e eles viram três outros corsarius contra a luminosidade do segundo andar. As criaturas desceram os degraus e conversavam numa língua diferente, estranha e bizarra até que se discordasse. Suas vozes eram finas e davam dores de cabeça.

Balta puxou as pernas de Lutile e Orivundo para que lhe seguissem. Passos cautelosos foram necessários para que saíssem do caminho dos corsarius e dessem a volta pelo salão, subindo pela escada do outro lado. O sr. Gualli voltou a respirar no momento em que olhou o corredor do segundo andar, era largo e com lâmpadas brancas pelos cantos, algo muito incomum em terras aqualaestes. Eletricidade não era algo que se encontrava todos os dias, mas foram as cabines em si que embasbacaram o gordo bigodudo. Ao contrário do primeiro andar, onde havia quartos nos corredores, a parte de cima era repleta de vitrines estilhaçadas e bem iluminadas. Parecia uma prisão com camas desfeitas sobre rodas e espalhadas, o que os obrigou a desviá-las para passarem.

Não tinha corpo algum, nenhum louco no recinto, apenas lugares vazios, escuros e frios, cujas lembranças não eram as mais atraentes para pessoas de boa índole. O fígado de Chloetor voltou a iluminar-se em azul quando Orivundo retirou o dedo, o que causou sua interrupção, então ele o jogou para um canto e voltou a seguir a única luz na frente, a de Lutile.

Balta farejava Haydee mais perto que antes, eles se aproximavam dela a cada passo, mas logo o tigre obrigou-se a parar. Uma porção de corsarius passaram pela sua frente, seguindo um homem encapuzado de vermelho, que viu o felino e a luz do velho Lutile.

– Intrusos! – a voz do misterioso homem esvaiu de sua capa rubra e fez cada vitrine no corredor explodir. Os cacos e farpas voaram pelos ares.

Baltazar pulou acima das lanças que lhe foram jogadas, desviando-as, e em seguida avançou nos corsarius.

– Deixem-nos comigo! – bradou o velho Lutile, retirando seu casacão e o tacando em direção àquelas criaturas. O tecido tornou-se aborrachado no meio do ar e amarrou os humanóides como um todo.

Orivundo criou uma barreira em volta de si que impediu os vidros de lhe arrancarem pedaços, enquanto o homem de vermelho correu para um dos corredores.

Subindo pela escada atrás do sr. Gualli, vieram outros corsarius, então Lutile esticou seus braços na direção deles e de seus dedos saiu tanto creme marrom que lambuzou os monstros dos pés à cabeça.

– Chocolate – falou o velho, sorrindo pelas beiradas, e logo em seguida as criaturas começaram a gritar com vozes estridentes e a coçar o corpo inteiro. – com pimenta – completou ele.

– Peguem aquele animal! – ouviu-se uma voz que ecoou pelos cantos ao redor deles.

O tigre adentrava um buraco e outro nas paredes, derrubava alguns corsarius e avançava nos que tentavam pegá-lo. Logo se deparou num largo corredor de azulejos feitos de cristais opacos, cujas paredes tinham fileiras de fígados de Chloetor, como se fossem tochas. A luz era azul para todos os lados que Balta pudesse olhar. A primeira coisa que ele pensou foi que era totalmente desnecessário matar tantos animais para retirar aqueles órgãos iluminados. Nem metade daqueles fígados bastava para que alguém pudesse enxergar onde estava pisando. Esses corsarius gostavam mesmo é de matar.

Baltazar continuou a farejar Haydee. Parecia que ela estava perto, era só atravessar o corredor.

No outra sala, o gordo Gualli parou e agachou-se ao lado de vários entulhos de dois metros como pedaços de móveis, atrás de uma pilastra de madeira podre. Ele suava tanto que parecia estar chorando pela testa. Tentou secar a cabeça com o dorso da mão e sentiu os pingos caindo dos poucos fios que tinha na cabeça, a mesma que a cartola não cobria mais. Ele evitou respirar alto, lutou forte contra a respiração ofegante, e logo ouviu os passos agitados de um grupo de corsarius, porém os mesmos foram se distanciando dele. Parecia que estavam indo para a outra extremidade do hospício.

O gordinho, desesperado e cujo coração batia feito tambores em noite de ritual, abaixou lentamente até a bochecha rosa encostar o chão empoeirado. Orivundo pôde ver, através da brecha entre um guarda-roupas e o piso, os pés descalços de um ser de vestes cinzas até os calcanhares. Os dedos eram manchados de sangue velho e escuro, não tinham unhas, eram ossudos e bem mais compridos que dedos humanos. O homem pensou que talvez fossem os pés de um humanoide aqualaeste desconhecido por ele, mas logo achou que seria improvável. Logo ele também viu outros pés se aproximarem daqueles, todavia esses eram parecidos com patas de dinossauro, com garras negras e grossas, enrugados e cascudos.

O sr. Gualli sofria de uma doença chamada Mabironose, a qual causa baixa na pressão, zombidos perfurantes nos ouvidos, falta de ar, dormência nas juntas e visão turva, tudo isso logo quando o medo lhe domina o corpo. Era como receber um choque de mil voltz em meio segundo. O pobre, mas rico, Orivundo, sentiu isso tudo naquele mesmo instante. Sua cara era de quem estava levando golpes de espadas na barriga, mas ele não fez nenhum som, e o máximo que conseguiu ouvir foram ruídos melados de saliva seca estalando ao abrir de bocas e outros ruídos misturados que lembravam o som agudo de um aparelho prestes a explodir. Aquilo pareceu uma conversa entre dois seres que, com certeza, não eram de origem aqualaeste. Então, as patas que lembravam as de um dinossauro correram para longe com intuito de cumprir a ordem do outro.

Orivundo Gualli estava estatelado com a bochecha ainda colada no chão de madeira, apenas os olhinhos se mexiam de um lado para o outro. Ele ouviu um terceiro integrante falando com o ser de vestes cinzas:

– Para onde o mandou?

– Para as celas.

– Devia mandá-los atrás do tigre!

– Vários grupos estão atrás dele. Esse lugar deve ser inteiramente vasculhado.

– E o gordo?

O sr. Gualli prendeu a respiração, sabia que falavam dele.

– Nenhum deles vai sair daqui com vida.

Baltazar já havia atravessado dois cômodos depois do corredor de azulejos de cristais. Ele se locomovia devagar, encostando as patas felinas lentamente no chão que, volta e meia, estalava. Muitas tralhas e escombros atrapalhavam o caminho, mas ele encontrava alguma passagem ou buraco para continuar a procura.

Um cheiro feminino mais acentuado saía de uma rachadura na parede, e, já que o tigre estava encurralado num beco, teve que tentar atravessar. Ele se apoiou no muro de madeira, prensando as duas patas dianteiras como se estivesse cavando. As afiadas garras criavam brechas na parede, e lascas se juntaram perto do rodapé. Logo ele teve que parar e se recolher no canto escuro do cômodo, já que a poeira do andar de cima começou a cair sobre seu focinho. Era um grupo de criaturas sinistras que estava bem atrás dele. Quando passou, o tigre apontou o rabo para aquela mesma parede e a madeira se desmontou. Assim como os humanos usam os poderes com os dedos, ele usava também com o rabo. A outra sala era, com certeza, onde Haydee estava.

Na outra parte do Sanatório Lanacius, Orivundo continuava encolhido como um feto atrás da pilha de móveis que havia encontrado. Lutile apareceu do seu lado, também agachado, e o encostou. O susto do sr. Gualli foi tanto que até a papa tremeu.

– Sou eu. – o velho gesticulou sem soltar som algum, apenas a boca muda formulando bem as palavras. – Não faça nenhum barulho.

Eles, então, olharam para os lados e tiveram a certeza de que ninguém mais estava lá. Foram andando devagarinho por uma sala e chegaram aonde parecia ser a cozinha. A porta não estava mais lá, se encontrava quebrada em alguns passos dali no chão de pedra. Havia panela para tudo o que era lado, inclusive muitas delas presas nas paredes. As bancadas eram quadradas, altas e de pedras marinhas, as quais eram as melhores para cozinhar, porém estava tudo fora do lugar. Os armários estavam abertos e vazios.

Dos buracos no teto começaram a cair lagartas brancas e transparentes do tamanho de braços humanos. De dentro das panelas elas saíam, agitadas e fofas, cheias de pressa para fugir de qualquer tipo de movimentação. Tinham, no final do corpo, uma espécie de fita lisa que mais parecia uma língua babosa e brilhosa. Lutile e Orivundo se coçavam ao apenas verem aqueles seres asquerosos rastejando pelas bancadas. Muitas delas caíam no chão e faziam algum barulho, outras paravam de se locomover para ficarem olhando eles passarem devagar, com dois pares de olhos pretos, duas antenas fluorescentes em cima e uma boca humana sem dentes.

Os homens continuavam a andar, fingindo não se importarem com aquelas criaturas grotescas que pareciam querer se alimentar deles. Uma delas se contorceu no piso podre e soltou pela boca alguns peixinhos ainda vivos, que nadaram rápido pelo ar para longe dali. Quando esses animais alcançaram o máximo da nojeira, os que estavam rastejando nas bancadas fizeram crescer patas finas e peludas como as de aranha. Elas se esticaram e chegaram a ser tão altas quanto Lutile. Uma panela caiu na bancada. O barulho foi tanto que essas lagartas se encolheram e vários tzíkers saltitaram para fora do armário, pulando pela janela com gargalhadas. Naquele mesmo instante Lutile e Orivundo pararam com o susto. Uma fileira de estilhaços amarelos atravessou a parede e, por pouco, não arrancou o braço do sr. Gualli. Desesperado, ele caiu sentado no chão.

Outros corsarius atacaram em massa ao velho, porém ele conseguiu desviar todas as lanças e adagas de areia, assim como os raios amarelos que ousavam matar também as lagartas gigantes.

Longe deles, o tigre Baltazar desvendava cada canto daquele lugar, mas logo ele soube que a espera e a luta iriam acabar, e eles partiriam para o Instituto Flintch. O felino finalmente estava longe, atrás de uma estante perfurada, e de lá ele podia avistar, através de um pequeno buraco na gaveta, o corpo de Haydee erguido no ar com a ajuda de cordas. Ela estava cercada de corsarius, por volta de uns trinta. Baltazar percebeu, então, que alguns foram se aglomerando perto de uma porta e foram esquecendo a mulher. A confusão na cozinha que envolvia Lutile e Orivundo havia atiçado a curiosidade daqueles guardas carniceiros. A situação começou a se agravar para os dois, contudo o caminho do tigre se abriu.

Sem falar nada, ele se aproximou da mulher que estava de cabeça para baixo. O rosto que era tão delicado estava arruinado. Havia cortes na pele que não cicatrizaram e os dois olhos estavam tão inchados que ela nem conseguiria abrí-los se tentasse.

Baltazar chegou a lacrimejar naquele momento, mas ele tinha que tirá-la logo de lá. Não era hora para se emocionar. O tigre apertou bem os olhos, e, com o rabo apontado para a corda, conseguiu fazê-la se romper. O corpo da mulher flutuou até acomodar-se no pelo laranja do animal, e, na sua garupa, ficou como um boneco de pano.

Antes que alguma criatura daquelas pudesse olhar para trás e tomar falta de Haydee, o tigre já estava no outro cômodo. A mulher havia caído no chão e seu corpo rolou. No vestido não houve muita diferença, já que, desde muito tempo, a cor do tecido não era mais branca, e sim marrom.

A agitação na outra sala e no resto do Sanatório Lanacius era incrivelmente estarrecedora. A luta devia estar de matar! Por esse motivo, Balta teve a sensação de esquecimento dos corsarius. Tentou não ficar nervoso ao sair de lá, e deixou que Haydee se levantasse sozinha, sem pressa. Ela se apoiou na parede até conseguir se esticar bem, porém as pernas tremiam como cordas frouxas de violão. Quando a mulher se virou para o tigre, os olhos felinos se molharam com mais lágrimas ao vê-la. Ela, por outro lado, não conseguia enxergar muito bem por conta do inchaço instalado em seu rosto há muitos ciclos menai, contudo Haydee não precisou ver nada, ela logo sentiu que estava com um amigo.

Lutile, carregando Gualli, entrou pela porta e estraçalhou tudo o que havia em sua frente com um simples gesto, e o caminho foi liberado para que pudesse passar com Orivundo.

– Vamos embora! – ele gritou ao encontrar o tigre.

Naquele mesmo segundo, a parede inteira que Haydee se apoiava quebrou em vários pedaços. Um gigante musculoso que usava roupa de espinhos agarrou a mulher pela cintura e a segurou no ar. O chão se quebrou e todos estavam prestes a desabar para o andar de baixo. A mulher não tinha forças para gritar, a mão do gigante a apertava tão forte que o intuito era realmente aniquilar.

Aquele enorme monstro era nada mais, nada menos que um dos corsarius, com a exeção de ser bem desenvolvido e, aparentemente, mais evoluído que os outros. Tinha um pescoço grosso, o nariz invertido com as narinas para cima, dois olhos caídos e bem escondidos pela sobrancelha caída e pelada. O peso de um crânio avantajado e quebrado internamente o fazia ter uma espécie de coroa de pedra, que, na verdade, eram os ossos saindo para a direita. Ele era torto para o mesmo lado.

Haydee sabia que não conseguiria, mas tentou, por um segundo ou dois, se livrar da mão do monstro de seis metros de altura. Ela não se importou em ter que tocar na pele verde escura e fria, que parecia estar morta há muito tempo.

Quando os corsarius apareceram na porta, Lutile esticou bem o braço e segurou Orivundo pela cintura. Eles teriam que pular o vão que estava distanciando-os do tigre e do gigante. Gualli gemia de dor. O braço do paletó, coberto de sangue, pingava incessantemente. No momento em que pularam, o tigre ajudou Haydee a fugir com eles. Balta jogou estacas de madeira na musculosa barriga do gigante. Elas entraram e ele pareceu fraquejar, mas ainda segurava firme o corpo da mulher.

O felino de pelos alaranjados flutuou cada canto do cômodo escuro, e, ao redor do maior corsariu de todos, ele voou. Como o bicho era realmente muito grande, Balta percebeu que ele também era corpulento. O tigre aproveitou os ataques e fez o gigante quebrar as outras paredes. Os pedaços caíam sobre Lutile e Orivundo, que estavam próximos às patas de dinossauro feridas do monstro. O velho, junto a Gualli, impedia que os jatos de areia cortantes dos corsarius, do outro lado, não os atingissem. Ele fez um escudo translúcido na frente deles. Cada grão que tentava atingí-los se tranformava em chocolate derretido e escorria para a fenda no chão, que ainda se abria.

Aqueles seres de Meon pararam de atacar e, um deles, que estava a frente dos outros, lhes falou algo em outra língua. Nem mesmo foi dito com o mexer dos lábios, mas sim com a boca aberta e um tipo de gargarejar diferente. Provavelmente um tipo de comunicação já bem conhecida por eles. Logo depois se retiraram, o que deixou Lutile e Orivundo intrigados.

O piso se quebrava mais a cada passo do gigante. Ele, com Haydee na mão, sentiu zonzeira e pareceu estar sem controle. Nenhum dos tapas que deu no ar acertou o tigre, mas ao menos a parede para fora do hospício ele conseguiu destruir. Foi a brecha para eles poderem fugir. Mas e Haydee?

Baltazar confundiu o gigante até fazê-lo ficar de costas para o jardim. Eles estavam a alguns metros de altura, então o felino cravou os caninos no pescoço do monstro e o empurrou com as patas para trás. Quando o grande corsariu começou a cair de costas, o próprio tigre, com o poder do seu rabo, fez com que Haydee não caísse com ele, puxando a mão do gigante para perto sem ao menos tocá-la.

Com a mordida no pescoço, o monstro já estaria morto, então foi fácil abrir a mão dele e soltar a mulher naquele mesmo cômodo, com o enorme braço servindo como caminho para que ela, Orivundo e Lutile pudessem descer até o jardim.

– Vamos! Depressa, segure no meu ombro. – o velho se ofereceu como apoio para que o gordinho pudesse subir no dorso da mão gigante.

Foi somente o tigre dar falta de Haydee, que ela já estava adiantada e descendo os enormes espinhos entranhados no braço do corsariu morto, como se fosse uma escada. Como era possível, depois de todos esses anos de sofrimento e dor, ela ainda ter forças para descer alguns metros de altura sem se cortar nos espinhos?

Balta logo viu que a dor que ela sentia era muito mais profunda, na pele só havia ferimentos. As dores estavam escondidas aonde ninguém podia ver, e um machucado a mais não faria diferença.

O jardim onde eles desceram era diferente daquele que aterrorizava a entrada, era um simples gramado de fundo feito de plantas altas até os calcanhares. Quando Lutile também desceu o corpo do gigante, Orivundo disse que não precisava de ajuda, ele faria tudo sozinho.

– Não parem – o tigre falou, com as patas já na grama. Ele olhou para Haydee e, sem falar mais nada, se aproximou, fazendo o braço da mulher coçar, como sinal para que ela subisse nele. Ela o fez com dificuldade, mas não demorou para por uma perna de cada lado e cair em repouso na garupa do animal. Fazia muitos anos que ela não encontrava uma posição tão confortável como aquela, foi como chegar ao êxtase, e, por um momento, ela entrou num estado de ausência total de sofrimento. Mais do que tudo, ela estava protegida.

Os zarmos de Lutile e do sr. Gualli chegaram correndo como avestruzes, com a exceção das asas dando apoio para mais velocidade, como o andar de gorilas. Quando os dois se preparavam para subir, avistaram uma torre do Sanatório Lanacius colidindo com a outra, e, naquela hora, uma crise de azar os abalaria ainda mais. A outra torre desabava sobre eles.

Era hora de voar. Eles não estavam preocupados com as novas leis. Foi ridícula a hipótese em até se pensar nisso, pois era vida ou morte, porém os zarmos não alçavam voo.

– Eles estão feridos! – gritou Orivundo, montado no animal. Uma mão apertava o braço molhado de sangue, e a outra segurava as penas da asa que possuía cortes.

– Foi uma armadilha! – constatou Lutile.

Eles correram para os lados e se distanciaram dali, mas quando a torre alcançou a terra, os pedaços de madeira espatifaram-se para tudo o que era lado.

Gualli espiou os destroços que se amontoavam atrás deles, enquanto a ave que montava corria mais veloz do que nunca. O homem também viu uma grande parte da fábrica Gualeis destruída.

– Ah, não! – instantâneamente o sr. Gualli começou a chorar. – Meu império! – as lágrimas desabaram.

Capítulo 4 – O bobo da corte.

“Mitos e lendas são que nem palavras, são ditos a todo o momento, mas somente impactam às mentes que se deixam impactar.” – Duravoìw Hentgle, empresário longaminiano.

ANTES DE SAIR DO CASTELO, Laura pediu a Thomas que ele orasse. Phoerios com certeza ouviria a prece, afinal ele poderia ajudar o garoto. Debruçado na janela do quarto, o menino conversava com o deus de Aquala.

Nunca nos falamos, não é? Acho que não mereço que me ajudem a conseguir reunir minha família mais uma vez, mas eu peço que o senhor me ajude a atingir esse meu objetivo.

         Depois que eu descobri que meu pai estava em perigo na Terra, eu sinto que não levantei um dedo sequer para trazer ele para Aquala, mesmo sendo meu desesperado e maior desejo. Passei o inverno todo somente pensando nele e tudo estava acontecendo tão devagar que eu achei que minha tristeza não fosse passar nunca.

         No próximo ciclo menai nós mudaremos de estação aqui em Aquala e espero que, com ela, venha boas novidades. Não será primavera nem verão, mas sim a ejámule, a estação ciclal que todos falam ser a melhor de todas, onde as águas do centro do planeta são jorradas para a superfície. Espero ver maravilhas por aqui.

         Lutile, o sr. Gualli e o Balta irão salvar Haydee. Ajudando-os, também estará me ajudando. Obrigado por me ouvir.

Uma cara de cavalo marinho entrou pela janela e lambeu o rosto do garoto. Era Corsena, a égua alada de Thomas que estava no jardim do lado de fora.

– Ei, garota… – ele passava a mão gelada nos filamentos da cabeça da égua e no focinho comprido e fino. Ele tirou debaixo do casaco um apito estranho pendurado num cordão. – Quando eu precisar eu sei que vou poder contar com você.

Thomas mandou que Corsena voasse para o céu, junto aos peixes que lá passavam, pois ele não saberia se era arriscado ela ser vista voando em Longamínis, já que Blestor Gukpuk havia criado a Lei Voarte.

Era hora de entrar na carruagem do sr. Gualli e ir para a província de Émi’Lian, onde se localizava o Instituto Flintch.

Pela estrada de neve eles sacolejavam, os peixes que puxavam a carruagem não tinham idéia do quanto as rodas de metal bem feitas sacudiam os meninos do lado de dentro. Mais inteligente e maiores que as outras espécies, esses peixes azul turquesa receberam um olhar um tanto importante do sr. Gualli antes de partirem. Ele fixou suas pupilas nos olhos dos peixes e tocou seu dedo indicador nas nadadeiras de cada um. A partir daquele momento eles sabiam o que deviam fazer e qual caminho tomar. O papel do cocheiro era somente fazer com o que os animais nadassem mais rápido. Era um arrogante e pobre homem que jogava um poder de seus dedos nos peixes, um bafo quente quase em chamas.

– Foi ótimo seu pai nos emprestar sua carruagem pessoal. Não teria outra maneira de chegarmos até o Instituto se não por terra firme – agradeceu Thomas, com o braço estendido para o lado de fora da janela enquanto eles sacudiam. – Acho que não o agradeci o bastante.

– Não precisa agradecer – falou Ophelia, sentada entre Felipe e Guido, de frente à Thomas. As tranças da menina gordinha estavam para cima e lembravam dois chifres. – Meu pai não usa essa carruagem para nada, só para ir às Corridas Zarminianas. Esse cocheiro, Frederico, ganha o salário pra não fazer muita coisa.

– Não gosta dele? – perguntou Felipe. – Ele me pareceu um tanto gentil.

– GENTIL? – Ophelia retrucou bem alto, e logo tratou de baixar o tom, ela não queria que o cocheiro a ouvisse. – Gentil? Ele é o homem mais grosseiro que eu já conheci, e aposto como será o mais grosseiro que vocês também conhecerão.

– Conviveremos um bom tempo com ele, Ophelia. Terá que aceitar seu humor – avisou Nadjo. – São centenas de quilômetros até chegarmos, passaremos por alguns povoados para dormirmos.

– Nadjo, obrigado por vir conosco – agradeceu Thomas com um sorriso. – Não sei nem como você acabou entrando nessa história conosco. Quero dizer, está sendo ótimo ter todos vocês por perto, mas não fiz nada em troca para que viessem comigo.

– Meus pais são bastante religiosos, Thom – explicou o garoto. – Com a descoberta de que você é o descendente de Phoerios e com toda essa história da sua família em apuros, eles decidiram me convencer a vir com você para ajudar caso aconteça alguma coisa. Meus pais acham que, eu estando em sua companhia, estarei mais perto de Phoerios.

– Por quê esse interesse todo com o nosso deus? – perguntou Sofia. – Seus pais sendo religiosos já não traz alguma coisa boa e divina para vocês? Eles tiveram que mandar você para cá por quê? Você tem pecados?

– Sofia! – Laura a repreendeu.

– Eu vim porque quis – respondeu o garoto, mostrando timidez. – Eles só me aconselharam não pelos meus pecados, mas sim pra atrair forças divinas para nossa família, mesmo eu nem sendo religioso como eles. Na verdade eu nem sou religioso, acredito nos deuses e só, não preciso ficar demonstrando nada a ninguém. Eu me resolvo sozinho com Phoerios.

– Acho que temos um Frederico aqui dentro também, Ophelia!

Felipe deu uma bela de uma cotovelada no braço de Sofia para que ela parasse de falar.

– Só estou explicando – disse Nadjo. – Se fui rude não foi proposital.

Os únicos calados eram a sra. Guinard e Guido. Rosana não prestava a mínima atenção no falatório que acontecia dentro da carruagem. Ela, como mãe, temia que algo ocorresse a Felipe, e esse foi um dos motivos que a levaram a acompanhar os garotos até o Instituto Flintch. A mulher passou boa parte do tempo com a cabeça na janela, o que se passava lá fora estava mais interessante que a discussão lá dentro.

Os olhos intimidados de Rosana Guinard não despregavam da legião de Protetores que se espalharam entre as árvores e corais na neve.

– Vocês tem que ver isso – ela deu espaço para os meninos verem o que seus olhos afrontavam. Havia barracames montados e espalhados entre as raízes que eram tão enormes quanto tentáculos de um Kraken. Eles avistaram mais Protetores vestindo capa negra e elmo com espinhos em cima de três ganestros, que eram animais com mais de cinco metros de altura e compridos. Chegavam a montar tendas nas costas dos bichos, cujo corpo era coberto por pêlos, tinha patas parecidas com as de ganso e um bico verde torto para baixo. Mas não era em cima de ganestros que os Protetores vigiavam as florestas, o faziam bem em cima de lulas colossais que nadavam horizontalmente acima dos galhos congelados das árvores. As mesmas tinham oito braços fortíssimos e dois tentáculos com ventosas e ganchos.

– Essas lulas são de arrepiar – comentou Laura. – Me pergunto como esses Protetores conseguiram domar animais com esse tamanho, são maiores que a torre mais alta do Castella Hondeias.

Naquele mesmo instante Ralphum Baltazar corria com Lutile montado em suas costas para o lado inverso ao dos meninos. O lugar era mais parecido com uma savana africana e tinha alguns troncos de árvores espalhados pela terra coberta por neve. A grama alta da outra estação ainda permanecia firme e forte mesmo com o gelo do inverno, e isso dava para ver pelas plantas verdes que eram encontradas pelo caminho.

Orivundo Gualli acompanhava o tigre e o velho em cima de um rapko. A cartola era bem presa na cabeça para que não voasse com o vento forte que batia no rosto, causado pela velocidade que corria ao lado de Balta e Lutile. A montaria do sr. Gualli tinha três metros, patas grandes com quatro garras afiadíssimas que cravavam no chão embaixo da neve, e um focinho parecido com o de uma foca, com a exceção da língua comprida e babosa. Tinha excesso de pele da parte da barriga e nenhum pêlo no corpo.

Orivundo era o único que sabia como chegar na fábrica Gualeis, afinal ele era o dono. As aulas de montaria lhes foi útil durante a juventude. O homem era um fã nato de Corridas Zaminianas, assistia a todas, e isso lhe serviu como impulso para aprender a correr tanto em cima de uma ave quanto em rapkos.

Eles percorreram quilômetros durante horas, não sabiam que o tamanho de Longamínis era tão absurdo. Bebiam água quando um rio lhes fechava o caminho. Chegaram a passar pelos famosos Arcos Jeverruntes, jatos de águas verdes que saíam da terra e eram jorradas para o lado como uma fonte, contudo estavam congelados. Sr. Gualli não tinha reparado que o frio havia parado as gotas separadas no ar, como se não houvesse gravidade. Não se precisava de outro motivo para que os Arcos fossem famosos.

Enquanto corriam, Orivundo explicou a Balta e Lutile que a distância do Castella Hondeias até sua fábrica era duas vezes maior que a distância entre o castelo e o Instituto Flintch, pelo que mostrava no mapa que ele guardava no bolso do casaco. Como sua carruagem não era tão rápida quanto o tigre e o rapko, eles provavelmente chegariam um pouco depois dos garotos, já que teriam que buscar Haydee e ainda ir para a província de Émi’Lian encontrar Thomas.

A neve começou a cair no meio da tarde, escurecendo o tempo. Balta havia parado algumas vezes para descansar, era muito difícil ter que carregar alguém nas costas por mais de duas horas sem parar, principalmente quando Lutile não conseguia se equilibrar muito bem em cima do tigre.

Mesmo com a neve caindo devagar, Lutile conseguia encontrar amanduyectu perto de algumas anêmonas. Era uma fruta laranja que se destacava no chão branco, por ter pequenos tentáculos ao seu redor. O velho tirou duas delas do tronco de uma amanduyceira altíssima, era a maior das árvores naquela região, mas só era diferente pelo tamanho. Lutile dividiu as frutas com Orivundo. Eles as apertavam e bebiam seu suco gelado, mas o gel que elas tinham no meio, havia se tornado gelo com um gosto horrível de gordura, embora esse mesmo gel no verão tivesse um sabor irresistível de morango com limão.

Ainda estava de tarde quando eles avistaram luzes acesas num povoado não muito longe dali, Balta os chamou a atenção. Um mar de gelo os separava do lugarejo, havia árvores cujos troncos estavam metade imersos na água congelada e a outra metade com os galhos balançando numa brisa leve e calma. Estava decidido que eles passariam a noite num daqueles casebres.

A cocheiro do sr. Gualli teve sorte em também encontrar um lugar onde passar a noite, no mesmo hotel velho que os meninos. Quando Thomas percebeu, já havia se passado algumas horas desde sua partida do Castella Hondeias. O garoto acordou todo encolhido em seu assento na carruagem, coberto até às orelhas por causa do frio. Ele reparou que a tocha no lado de fora estava apagada, e naquele momento uma faísca saiu de seus dedos. Em alguns estalos, uma água quente saiu de seu dedo indicador, e aquele líquido pegou fogo, mesmo sendo molhado. Dessa forma a tocha foi acesa quando essa água a tocou.

Thomas olhou para o dorso da sua mão e reparou que usava uma luva incomum, a mesma que veio de presente junto com a égua Corsena e o apito no cordão. A pedra Kespentate cravada no couro não era sinônimo de força, mas aquela peça criada pelo deus Dwinler cabia perfeitamente na mão do garoto, o que poderia explicar como a luva e ele se davam tão bem. Thomas era um menino muito poderoso para a idade que tinha, mas quando usava aquela luva, ele sentia a sensação de conseguir realizar qualquer coisa que quisesse. Não era a realidade, de fato, mas era o que ele sentia.

Os olhos amendoados do mais novo Flintch logo se depararam com um belo rosto cuja aparência era totalmente desligada daquele planeta. Laura vivia no mundo dos sonhos naquele momento. Seu nariz fino e arrebitado estava frio e vermelho, porém Thomas levou sua mão até o rosto pálido da menina. O calor que criava faíscas na palma do garoto logo fez com que Laura ganhasse de volta a cor que ela teve no verão, chegando a suspirar. Thomas não voltou mais a dormir, ele preferia que ela tivesse uma noite melhor.

A carruagem parou alguns instantes depois e um feixe de luz iluminou a madeira da janela onde o garoto estava, então ele ouviu uma conversa do lado de fora.

– Vocês tem um celeiro? – disse um homem, provavelmente o cocheiro, num tom pouco ríspido e rude.

– Não senhor, mas temos um lugar onde os peixes poderão descansar com a carruagem – então Thomas ouviu uma mulher responder com uma voz forte. – Só traga o seu senhor para dentro, mandarei a arrumadeira levar seus pertences para os quartos.

Frederico pisou na neve e abriu a porta da carruagem sem medo de fazer barulho, falando como se não tivesse ninguém dormindo.

– Saia daí garoto – o cocheiro usava um casacão que aparentemente não era seu, pois a bainha arrastava na neve. Tinha barba e bigodes grandes e uma aparência de bêbado. – Consegue trazê-los para dentro?

– Consigo levitá-los, mas eu acho melhor acordá-los – sugeriu Thomas. Logo o garoto começou sacudindo Laura delicadamente quando Frederico gritou.

– ACORDEM! TODOS PRA DENTRO! JÁ!

Alguns pulos fizeram a carruagem sacudir. Ophelia abriu os olhos num susto e quase voou no pescoço do cocheiro, pronta para matá-lo.

– Quando meu pai está aqui eu não ouço vozes altas – ela comentou, esperando que Frederico respondesse, mas ele somente riu ironicamente.

Sonolentos no frio e com pés na neve, Felipe, Sofia, Ophelia, Nadjo e Guido andaram depressa para dentro do alojamento, onde parecia estar quente e cheio de música. Os flocos de gelo não caíam mais, vagavam no ar como poeira branca na noite. Laura, ao descer o degrau da carruagem, olhou para Thomas e estendeu a mão.

– Estou com frio – ela falou pra ele. O garoto somente sorriu e agarrou sua mão.

Rosana desceu em seguida e olhou com desprezo para o cocheiro. Encarando-o bem nos olhos, ela confessou:

– O senhor é um estúpido. Seu canastrão! – a sra. Guinard lhe deu um tapa e entrou no alojamento. Um cobertor de lã saiu voando da carruagem como se somente uma cabeça flutuante estivesse sob os panos. Era o potuco Luka, que saiu debaixo da coberta e deu também um tapinha em Frederico, que apenas fez balançar a bochecha barbada do homem.

Thomas, antes de entrar, viu a mulher que conversou com o cocheiro. Ela era bem diferente do que ele pôde imaginar em alguns segundos.

– Bem vindos ao hotel e bar Yerlek. Sou a manleira Crintyk Yerlek. Meu pai é dono daqui – falou ela. Era uma cervuni, uma raça que tinha uma bolota atrás da cabeça e duas antenas caídas, uma na frente de cada orelha pontuda. Thomas se apresentou e logo reparou que Crintyk usava um lenço na cabeça para esconder os fungos na pele, davam a aparência de criar buracos exatamente como os existentes no solo da Lua. A pele da cervuni era verde aspargo e tinha dois braços com duas mãos em cada um, e três dedos em cada mão. A boca era pequena e quase no queixo, tendo dentes parecidos com fibras como as de vassouras.

Eles entraram loucos por comida e água quente, e lá encontraram. O hotel Yerlek tinha um ótimo sistema de aquecimento de água, eficaz e estranho. Crintyk explicou a Thomas e a Laura que uma outra cervuni na cozinha conseguia ferver a água gelada através de um filtro no corpo. Ela tocava um dos dedos na panela e a água passava por dentro dela até sair quente no outro braço.

– Arbinelo Treki inventou esse poder – disse Laura a Thomas. – É através da transfusão ulnar.

– Como, minha querida? – falou a cervuni, com a aparência cansada e ainda tentando sorrir.

– Não é nada, só um comentário.

As outras empregadas humanas traziam as malas e tentavam fugir das mãos dos clientes com o mesmo perfil de Frederico: arrogantes, bêbados e atrevidos. Uma outra manleira levou a carruagem até um portão duplo, puxando os peixes pelas rédeas, e no momento em que ela o abriu, uma onda de água quente e bem transparente ameaçou sair. Era uma barreira de três metros de água onde os peixes adentraram, levando consigo a carruagem. Lá era o lugar perfeito para aqueles seres marinhos passarem a noite.

– Vocês estão com fome? – a carismática Crintyk perguntou, entrando para trás de uma bancada, onde pegou um copo com uma de suas antenas e uma garrafa velha e escura. Despejou o conteúdo líquido no copo e o jogou na mesa para que bebessem. – Para jovens eu só ofereço sucos. Esse é especial da minha cozinha, eu o chamo de gosma fugitiva.

Thomas e Laura olharam para o líquido melequento que criava braços para tentar fugir de dentro do copo.

– Obrigado, mas eu vou ter que recusar – o garoto o segurou e devolveu para a cervuni, porém logo a gosma fugitiva tentou pegar seus dedos. – Nós agradeceríamos se apenas trouxesse um prato de comida. Passamos mais de três horas na carruagem e estamos cansadíssimos.

Uma senhora cantava ópera numa mesa com alguns homens, um deles thonze, e tocavam instrumentos ocos feitos de madeira e outros com cordas.

– Cala a boca, mulher! – um senhor bêbado gritou para a esposa.

– Não grita com sua esposa, Glohuval! Ela já subiu para o quarto, não está mais aqui embaixo! – respondeu Crintyk, no mesmo tom de voz para defender a amiga.

– Desculpe pela bagunça e pela gritaria, querido – disse ela ao sorrir para Thomas. – Vou levar a comida nos quartos, podem subir.

Quando Laura deu o primeiro passo e pisou no degrau, um ser voador passou bem veloz entre suas cabeças.

– Meydana, volte aqui! – berrou Crintyk, e passou a frente de Laura. – Desculpe querida, o garoto amigo de vocês, o de cachinhos, tem um potuco, não tem?

– Felipe? – falou Thomas, olhando para Laura.

– É que Meydana está no cio. Está me dando muito trabalho essa potuca, toda vez que um macho da espécie dela chega acompanhando o dono, ela não o larga – explicou Crintyk e voltou a correr atrás da mascote.

Enquanto subiam o primeiro lance de escadas, eles olharam para cima, com esperança de ver o teto perto deles, mas não. O hotel Yerlek tinha onze andares e era bem estreito. As paredes eram feitas de madeira corrida e parecia ser uma construção mal acabada, cujas paredes eram tortas. O chão do segundo, terceiro e quarto andares era feito de um pano elástico bem resistente, e nas paredes de madeira havia estante onde se podia guardar roupas e retratos. Quando Thomas passou por baixo do segundo andar, teve a sensação de que o aqualaeste maluco que se hospedava lá queria destruir o lugar, já que o homem pulava no chão e quase encostava as nádegas em sua cabeça.

– Cuidado com a cabeça, Laura – o garoto andou entre um lance e outro de escadas com as mãos para cima.

– Tudo aqui parece remendado – comentou a garota. – Melhor andarmos devagar para que esse piso não quebre.

Eles subiram até o décimo primeiro andar, o último. Lá tinha apenas um quarto, porém era o maior do alojamento. Qualquer passo que se dava era motivo para pânico, e quando eles bateram a porta, viram que o chão era duro e não de elástico como o dos primeiros andares.

– A música está muito alta lá embaixo, não está? Creio que nenhum de nós conseguirá dormir…

Thomas olhou para o quarto e as malas estavam jogadas no chão. Felipe, Sofia, Nadjo, Ophelia e Guido estavam caídos de boca aberta nas camas. O som era de grunhidos de porcos por todo o andar, os garotos estavam roncando já em sono profundo. A sra. Guinard caía para o lado dormindo na poltrona, onde também já falava sozinha.

– Como eles podem ter dormido num piscar de olhos?

– Estou prestes a descobrir – bocejou Laura. – Tem um lugar para a gente perto da janela.

A menina andou até a cama com passos silenciosos na ponta dos pés e deitou com a roupa que estava no corpo, mesmo os casacos que vestia lhe prendendo os movimentos. Thomas aumentou o aquecedor de metal cilíndrico que permanecia no meio do quarto, e depois foi se deitar.

– Está com sono? – ele perguntou à Laura. Ela respondeu de olhos já fechados que sim, numa voz exausta e baixinha.

– Posso me deitar com você? – o garoto voltou a sentar, só que mais perto da janela. A menina não disse nada, somente deitou suas costas no colo dele. Thomas suspirou e soube naquele momento que seu coração estava batendo muito mais forte que de costume, foi naquela hora que ele descobriu seus sentimentos reais por Laura, ele a amava. O garoto não ousou se mover e apenas deitou a cabeça no parapeito da janela bem fechada, enquanto os flocos de neve vagavam no ar lá fora.

Crintyk deu algumas batidinhas no quarto e abriu a velha porta. A cervuni segurava quatro bandejas de madeira com sopas de língua de Chloetor ferventes nos pratos. Contudo nenhuma manifestação ocorreu, o que lhe fez acreditar que já estavam todos dormindo, e realmente estavam. O potuco de Felipe voava, fugindo de Meydana, pois era claro que Luka não queria nada com ela, era ainda um bebê. Crintyk a chamou a atenção com a voz baixa.

– Venha já para baixo, não quero você correndo atrás de homem.

A potuca da mulher flutuou para perto dela de cabeça baixa, deixando Luka livre para descansar no escuro. Meydana tinha seu corpinho marrom claro de trinta centímetros e usava um vestidinho de pano leve e remendado. Era uma graça de potuca. Elas desceram de novo para a farra com dança e música no bar do primeiro andar.

A cabeça alongada da égua Corsena bateu na janela do lado de fora, assustando Thomas. Ele teve uma rápida reação e se tremeu todo, mas logo tratou-se em se acalmar, não queria que a garota que dormia no seu colo acordasse.

– O que você quer? – ele sussurrou para a égua. – Quase me matou do coração.

Corsena lambia o vidro e batia o focinho de cavalo marinho. Melecava e sujava a janela.

– Quer entrar? Só se não fizer barulho – o garoto fez a janela abrir nem ao menos encostando nela. – Você deve estar com frio.

A égua batia as asas do lado de fora para continuar com a cabeça no quarto, mas quando Thomas abriu a janela e o ar gelado entrou, Corsena não hesitou em pular para dentro. Ela hesitou galopou para não fazer barulho, pois o que seu mestre pedia ela fazia, era inteligente demais. As patas do animal encostaram no soalho e ela logo deitou, mas não deixou de pedir ao dono que lhe coçasse a crina com filamentos. Luka flutuou em cima da égua e a fez de cama.

No meio da noite algo bem misterioso aconteceu, a música não tocava mais. Estava quase na hora de todos acordarem mas o céu ainda estava escuro, pelo menos a maior parte dele. Os olhos de Thomas estavam no claro, uma luz bem forte que ora era branca ora vermelha.

O garoto ouviu o som de sininhos, um barulho que lembrava a infância de todos menos a dele, o barulho de que Papai Noel havia chegado. Contudo aquele som não era melódico e alegre, era depressivo, sofrido e isolado. Macabro era a palavra que mais conseguia definir aquele sino. Parecia vir só da cabeça dele, mas estava enganado.

– Que barulho é esse? – Guido levantou da sombra, mais assustado que o normal.

– Eu estava ouvindo, mas já parou de tocar – sussurrou Thomas, olhando para o garoto e preocupado que Laura acordasse.

– Ouça – falou Guido, pedindo que Thomas também tentasse. – Faz um esforço. Olha… ouviu? Está muito longe.

No bar, Crintyk mexia a sopa numa grande panela erguida sobre as chamas altas da lareira.

– Crin… Crin… uma cervuni que trabalhava no bar chamou a atenção da ocupada chefe.

– O que houve? – berrou a manleira com uma colher de pau na mão. – Por quê a música parou? Estou mexendo a sopa, senão os pedaços vão queimar e ficar duros.

Não precisou mais que ninguém a chamasse para que percebesse que havia algo fora do normal acontecendo.

– Quero mais bebida! Me sirvam mais, eu to pagando! – gritou o cocheiro Frederico, batendo o copo na mesa.

Houve uma confusão de arrastar cadeira para cá e para lá. Conversinhas entre os músicos e suas mulheres.

– O que está acontecendo?

– Você está ouvindo?

– Vários deles por toda parte.

– Não consigo…

Quando Crintyk berrou:

– Calem a boca! Ouçam…

Glohuval levantou e andou cambaleando para perto da esposa.

– Fique quieto Glohuval!

O homem parou e sentou na cadeira com cara de aflição.

– Crin, olhe para a porta, está vendo? – a cervuni do bar apontou para a parede feita de madeira antiga, as luzes vermelhas e brancas transpassavam para dentro do bar. Os feixes entravam através de cada buraco na parede mal construída, piscavam e iam embora.

– Ouçam… – Crintyk falava para ela mesma. – Ouçam o sino.

A magricela esposa de Glohuval começou a gritar inesperademente. O marido andou em direção a ela e a fitou com espanto, estavam em pé e a mulher apertava bem os punhos, a expressão no seu rosto era de sofrimento. Na cabeça dela o som não era mais de sinos e se assemelhou mais ao barulho de vários guizos. Ela os ouvia bem de perto, como se estivessem a um sopro de sua orelha.

A esposa de Glohuval logo voltou ao normal, mas com as mãos na cabeça. As fisgadas que ela recebia no cérebro a davam náuseas, e foi aí que ela vomitou nos pés do marido.

Quatro Protetores entraram pela porta. Seguravam os elmos espinhosos na mão e as botas pretas ameaçavam quebrar o soalho. Crintyk levantou as antenas e rosnou para os visitantes.

– Pois, não? O que desejam?

Um dos homens não tinha um terço da cabeça, a parte da testa e do olho direito foram substituídas por um grande e grosso chifre. Os outros três eram normais, porém mal encarados. Jogaram mesas e cadeiras para longe sem ao menos as tocar.

– O que pensam que estão fazendo?

– Somos os Protetores de Longamínis, senhora. Como deve saber, devemos proteger essa província.

– E pensam em fazer isso como? Quebrando minhas cadeiras?

– Todos. Me escutem! – gritou o homem, sem ao menos precisar elevar a voz, os presentes já prestavam atenção naqueles de capa negra.

Thomas e Guido conseguiam ver do décimo primeiro andar a movimentação no bar lá embaixo. Apenas com os olhos acima do corrimão eles ouviam a conversa.

– Não saiam daqui. Isso é uma ordem. Apenas digo isso. Lá fora está perigoso demais a uma hora dessas.

Thomas virou-se para Guido e pediu que descessem para saber o que estava acontecendo.

– Nem pense nisso! – exclamou Guido. – Não quero me meter com esses Protetores, não os confio e sei que não estão aqui para o bem. Vamos voltar para o quarto, é o melhor que fazemos. O recado deles já foi dado e nós ouvimos, não saia daqui.

Eles fecharam a porta e voltaram para onde deveria estar escuro, porém as luzes na floresta ainda piscavam incessantemente. Thomas foi até a janela e viu um disco voador soltar um raio constante nas árvores.

– Olhe! É um disco voador!

– O quê? – perguntou Guido, virando para também olhar, mas quando o garoto o fez, as luzes se apagaram e ele não pôde mais avistar nada. – Tem certeza do que está falando? Isso não é possível.

– Certeza absoluta! É claro que é possível, nós estamos em Aquala, sabemos que existem vários outros planetas por ai.

– Eu digo que não é possível porque se for um disco voador, só poderá ser de um lugar.

Thomas engoliu a seco com assombro no rosto, pasmo diante da óbvia resposta.

– Que lugar?

Guido titubeou:

– Meon.

Os barulhos de guizos voltaram a assombrar o hotel.

– Agora estou ouvindo bem alto – Guido tremeu as pernas.

Outro grito foi ouvido do primeiro andar, e logo mais outro ecoou pelas escadas. Corsena levantou, ameaçando relinchar caso a hesitação nos outros andares não cessasse, e no segundo seguinte os outros acordaram.

Nadjo, cujos olhos estavam apertados apavorou-se logo de cara.

– Que barulho é esse? São guizos?

– Não, parecem ser sinos – falou Thomas.

– Não, não… são guizos – o garoto levantou e raciocinou. – Sonhei esta noite com isso. Como não me lembrei antes? Tinha muitos guizos e um palhaço. Foi um pesadelo, na verdade.

Os outros também acordaram assustados e o olharam.

– Um palhaço? – Felipe o fitou, curioso em escutar a história da noite turbulenta que o garoto de black power teve.

Naquele segundo uma luz na floresta acendeu, só que desta vez somente um clarão branco. Todos, agora, focaram numa fileira de grãos cinzas que entrou pela parede do quarto através de um espaço entre uma talha e outra de madeira. Eles se afastaram de onde os grãos se reuniram e um corpo saiu dali. Era um bobo-da-corte, só que a roupa colorida era suja como se fosse um prisioneiro imundo de um calabouço. Ele tão tinha olhos, nariz, nem boca, o rosto era liso e branco, o que deixou os garotos apavorados. Os guizos nas pontas do chapéu colorido fazia um barulho forte nos ouvidos de cada um perto dele, então fugiram pela porta.

– Thomas Flintch, eu encontrei você – disse o espantoso palhaço quando segurou o garoto pelo pescoço. O som nasalado saiu de qualquer lugar menos da boca do bobo-da-corte, já que não havia uma.

– Não! – berrou Laura quando virou para trás. Alguns já desciam as escadas, então ela sozinha conseguiu flutuar uma das camas e jogá-la no palhaço, mas não adiantou. A garota então ouviu o funcionário de Tertius falar para Thomas:

– A gosma do metalitus adiantou.

Naquele mesmo instante o garoto se lembrou de quando estava na escola e um monstro de metal quebrou parte da sala, entrou e o jogou um líquido pelo focinho. Estava claro que aquele material pegajoso foi imprescindível para que achassem Thomas.

O palhaço, ainda segurando o garoto pelo pescoço, fez com que seus casacos se transformassem em areia, e agora ele só vestia uma calça e uma blusa de manga. Logo depois criava feridas no rosto do Flintch, assim como nos braços e no peito. Com a outra mão, aquele monstro da corte puxava o sangue do garoto, que flutuava até sua palma aberta. Pingos vermelhos chegavam a pingar na luva de tão imunda e cinza.

Thomas se tornou mais branco ainda, magro, parecia desnutrido e com os olhos roxos, porém Corsena ficou de pé, apenas se sustentando com as duas patas traseiras, o que fez o garoto e o bobo caírem num buraco que quebrou no chão. Laura se agachou e olhou para baixo, através do rombo onde eles tinham acabado de cair. Ela viu os corpos apenas caindo e quebrando todos os pisos dos andares abaixo.

Guido ainda descia correndo a escada, mas parou quando olhou para trás e se deu conta de que Thomas e Laura não estavam mais ali. Resolveu voltar, mas Ophelia e ele se jogaram no chão quando o piso de elástico do andar de cima quase tocou no soalho onde eles pisavam. Alguma coisa pesada havia caído ali, era Thomas e o palhaço.

Corsena desceu as escadas correndo e derrubou quem estava nos degraus.

– Thomas caiu! – berrou Laura, enquanto corria para o andar de baixo. – Quebre a parede!

Guido subiu um lance de escadas e apontou as duas mãos em direção à madeira do quarto, quebrando-a e jogando pedaços e farpas para os lados.

– Tire-o daí – berrou a sra. Guinard, quando viu o corpo do Flintch pulando no pano elástico. – Tragam-no para cá!

Guido, Felipe e Nadjo precisaram se reunir rápido para flutuar Thomas juntos, já que o garoto era muito poderoso e poder, em Aquala, pesava muito. Eles o trouxeram para o piso perto deles e apenas viram, no rombo na parede, a cabeça flutuante do bobo da corte em meio a uma nuvem de grãos cinzas. Ele olhou bem para todos que estavam em volta de Thomas naquela escada. Os guizos do chapéu fizeram um barulho delicado e ele quebrou outra parede para sair do hotel. E para a escuridão da noite foi aquele palhaço, onde a luz branca da floresta apagou e onde a neve caía lentamente.

Capítulo 3 – O saudoso governador Gukpuk.

“O mundo está em constante mudança. Mudar é bom. Mudar para a pior que não é muito legal.” – Ruanliuy Pedevox, ministro da Juventude Social.

NA OUTRA MANHÃ os grãos de gelo já tinham parado de cair, a neve estava mais fofa e Laura, quando saiu da cabana, soube que não haveria mais nevascas como a da daquela noite. Enquanto esperava os amigos acordarem, ela via o céu branco com manchas cinzas espalhadas para todos os cantos, não eram nuvens, simplesmente manchas.

Como Thomas já havia dito à Laura, ele queria conhecer o instituto fundado pela sua mãe antes que o historiador e inventor Arbinelo Treki chegasse por aquelas terras. O garoto queria se mudar para lá com o intuito de ter um lugar seguro e isolado onde pudesse se acomodar sem a intromissão de barulhos de hóspedes do castelo.

Laura pensava em como poderia ajudar seu amigo, e foi olhando para o final das árvores que ela acreditava encontrar respostas. Ela via os troncos que eram mais grossos que cabines telefônicas e enxergava os peixes saindo das anêmonas que eram maiores que ela mesma. Olhava as águas vivas flutuarem no ar como se houvesse água por todos os lados, mas simplesmente não tinha. Ela pensava, avistando os cardumes de peixes levantarem as folhas secas no chão, mas não encontrava respostas, apenas mais perguntas.

“Por quê eu vou fazer isso por ele?” foi a questão que acabou encontrando Laura, e que começou a martelar sua cabeça. Ela não conhecia Thomas nem há um ano e já estava disposta a arriscar sua própria vida para ajudá-lo a procurar os duyoktu e voltar para a Terra. Ela não sabia de que maneira já havia se encontrado naquela situação e nem o porquê de ter aceitado fazer tal tarefa. Sofia e Felipe conhecem Thomas há alguns anos, os laços de amizades entre eles era maior que entre ela e ele.

Laura pensava, olhando para os enormes corais nos troncos das árvores, onde chegavam a criar anéis e passarelas entre um galho e outro. Estava claro na cabeça dela que acompanhar o garoto era o que ela queria, porque de algum modo queria ficar perto dele. Não precisava buscar razões para ajudar Thomas, ambos criaram uma ligação tão forte em tão pouco tempo que qualquer risco transformava-se em prazer somente pelo fato dela estar ao lado dele.

A menina caminhava sobre o lago congelado, onde as árvores não tampavam o topo das torres distantes do famoso e querido Castella Hondeias. No momento em que reparou que, no céu apenas havia bandos de pássaros, alguns deles paleones, ela ouviu uma batida oca, aparentemente no gelo. Não havia nada ao redor dela, afinal encontrava-se no meio do lago Waltz. Ouviu-se outra pancada. A garota começou a ficar assustada, pensou que talvez fosse algum grande peixe lutando para quebrar a superfície congelada. Quando os olhos de Laura se fixaram numa rachadura crescente, ela não pensou duas vezes em correr, já que a quebra no gelo ia aumentando e seguindo a garota.

Quando chegou a pisar na neve em terra firme, uma sereia pulou para fora da água e caiu com a cauda alaranjada ao lado da menina, tinha o cabelo longo que chegava à barbatana e tranças embaraçadas nos fios. Seus traços eram delicados e tinha um rosto perfeitamente humano, exceto pelas guelras nos maxilares.

Laura a olhou com medo no primeiro instante, mas logo em seguida acomodou-se quando viu a expressão insegura da sereia.

– Eu… eu já… eu sei quem você é – falou a garota. – Você é Pisínole, a sereia que rastejou até o Castella Hondeias.

– Sim, sou eu mesma – ofegou, com água pingando do cabelo. – Lamboríe me pediu para vir até aqui.

– Lamboríe? O que ele quer? – Laura franziu a testa.

– Mandou vocês voltarem já para o castelo. O novo governador, Gukpuk, está no salão cujo piso é feito de água. Não chamou muita gente mas muitos estão reunidos lá para ouvir ao discurso. Muitos homens e mulheres estranhos tomaram conta do castelo, acabei de voltar de lá.

– Estranhos como?

– Parecem com a sua espécie, mas não sinto algo bom vindo deles. Lamboríe quer que vão imediatamente para lá – a sereia Pisínole se arrastou na neve, pronta para mergulhar novamente na água congelante.

– Espere! – pediu Laura. – Vou acordar eles, mas receio que demoremos um pouco mais para chegarmos. Teremos que ir a pé.

A sereia confirmou e pulou no lago com pressa, deixando somente Laura com um sentimento ruim. Ela correu pra cabana e pulou no colchão para que Thomas acordasse, mas acabou que todos levantaram bem rápido.

– Ouçam os guizos! Guizos! – Nadjo acordou gritando. O rosto inchado e a remela no olho. Eles o olharam sem medo, encarando-o. – Que o indicador de Phoerios me livre! Era só um sonho.

– Precisamos ir ao castelo – Laura os avisou. – É urgente.

Quando todos saíram da cabana, inclusive Ophelia, Nadjo e Guido, o velho Lutile coçou os punhos, pensando no que iria fazer. De um instante para o outro ele apontou a mão para o telhado de palha e tudo foi se desfazendo. Os troncos no piso se levantaram e foram arremessados em direção às árvores, entrando nelas, assim como os garotos cozitavam. Os tapetes se desfiaram e cozeram os fios de si próprios, tornando-os as luvas de Lutile, assim como o colchão que virou novamente a capa de frio.

O telhado de palha da cabana explodiu silenciosamente e tornou-se as folhas secas e amarelas acima da neve. Em poucos segundos tudo voltou a ser como era antes deles chegarem ali, e eles saíram de lá como se não tivessem passado nem a noite entre aquelas árvores. Todos os vestígios tinham desaparecido de lá, embora não precisassem esconder nada de ninguém. Era tudo uma questão de limpeza.

Os garotos caminhavam para o Castella Hondeias, o único monumento que podia ser visto de todas as vilas e povoados que existiam por aquelas terras. O castelo era algo absurdo, e o fato de ninguém saber quantos cômodos tinha de verdade, o tornava ainda mais grandioso pelo seu tamanho.

Ao redor da torre central havia sete jardins com neve, e bem longe daquele atrás do castelo, onde as esculturas de plantas conseguiam assustar os jovens thonzes, havia uma nascente de um lago que era chamada de “Bacia”. Os aqualaestes acreditavam que aquela água era sagrada, pois além da fonte estar na terra ao lado do castelo, era a única em toda a província que não congelava no inverno.

Os artracóis, raça que tinha traços que lembravam caracóis, eram os que ficavam com os trabalhos braçais e lavavam roupas nessa água. Possuíam uma cabeça e corpo com quatro membros, como os humanos, só que com duas antenas, olhos redondos e esbugalhados e sem queixo, a boca estava logo acima do pescoço. Nas costas carregavam uma concha um tanto menor que seu corpo inteiro, o que os atrapalhava de vestir os roupões feitos com fios de tripa do grande roedor das florestas, Chloetor.

A água da Bacia caía como uma cachoeira, só que a queda era diferente, a água ziguezagueava no ar até chegar num outro lago lá embaixo. Os artracóis transitavam entre a floresta e a Bacia, em cima, através de um caminho com degraus de pedra entre as rochas úmidas da cachoeira. Carregavam cestas com o que colhiam e as levavam para a cozinha do castelo. Essa trilha lembrava uma gruta com goteiras em todos os cantos, e isso apodrecia a madeira que remendava os degraus. Naquela hora todos os artracóis pararam de trabalhar para ouvir o que o governador Gukpuk tinha a dizer, e eles andavam para o salão do castelo.

Quando Thomas, Laura, Felipe e Sofia chegaram no jardim, o discurso já tinha começado, até mesmo quem estava atrás do portão pôde ouvir. Os garotos olharam ao seu redor e viram que alguma coisa estava errada. Além dos aqualaestes como thonzes, humanos e artracóis, muitas pessoas de preto estavam espalhadas pelos arbustos congelados. Eram homens e mulheres com olhares maliciosos. Encaravam todos e não tinham medo em mostrar raiva e crueldade. Pareciam querer briga com qualquer um que passasse perto. Quase todos tinham cicatrizes, mas não eram comuns, seus rostos eram repletos de cortes profundos que não cicatrizaram direito, mas alguns chegaram a não ter um olho, enquanto outros possuíam pupilas inteiramente brancos.

Laura andava perto de Thomas, ela estava bem atenta a tudo o que acontecia perto deles. A menina não tirava os olhos daquelas pessoas, reparava em todos os detalhes. Todos vestiam botas pretas, calças e casacos também pretos, porém eram diferentes uns dos outros. Uma mulher que tinha metade da cabeça raspada se aproximou de Thomas e o fitou descontroladamente, ele teve a sensação de estar sendo caçado por predadores que poderiam devorá-lo ferozmente e sentir seu gosto amargo vazar da carne dura e gelada. Essa mesma mulher devia ter uns trinta cortes no rosto, o que a dava uma aparência rude, desnorteante e ao mesmo tempo sofrida, mas também apavorante. Não tinha uma orelha, pelo pedaço de pele na lateral da cabeça, teria sido arrancada.

Laura segurou firme o braço de Thomas, o medo que o olhar daquelas pessoas trazia tomou o corpo da garota, eram olhos de ódio que ela queria distância.

Dentro do castelo havia um salão redondo e muito grande, com raízes de árvores adentradas pelos vidrais e teto com arcos ogivais. As paredes eram de pedra, as colunas de mármore e o chão era feito de água, mas a superfície estava congelada por causa do inverno. Dezenas de pessoas andavam sobre o piso, plano, calmo e reto, sem escorregarem. Em outras épocas era estranho andar naquele chão, a sensação era de que poderia afundar a qualquer momento, e quando Thomas pisava, seu pé ficava molhado, mas em alguns segundos secava, como se a água evaporasse, só que sem calor.

O governador Blestor Gukpuk estava no final de uma escadaria que se dividia em dois. Ele falava com a população de Longamínis com fervor e usava alguns chifres como alto falantes em seu palanque, para que todas as dezenas de pessoas pudessem escutar as palavras de um homem honroso, sincero e humilde que encantava a todos. Blestor era grande, tinha pouco cabelo molhado na cabeça e suava tanto que parecia estar derretendo.

– Vamos todos falar… quero dizer, contar… quero dizer, cantar… o hino disso… daqui… nossa província – ele sorria em demasia. Se contraísse aqueles músculos do rosto do jeito que estavam, iria acabar tendo sérias cãibras.

– Olhar pra ele está doloroso até pra mim – cochichou Sofia quando cutucou Ophelia.

No salão era hora de honrar o lugar onde viviam, e os longaminianos faziam isso levando a mão direita aberta na altura do rosto. Deviam esticar o polegar, apontando-o para a boca e dobrar somente o dedo indicador. Para os aqualaestes aquele símbolo feito com a mão simbolizava muita coisa importante para que a vida pudesse fluir. Já que o dedo indicador era onde havia maior concentração de poder no corpo de um ser de Aquala, ele era o único dobrado para mostrar que era forte o suficiente para ser o filtro da desonra e da mentira naquilo que era dito.

Perto dos corrimãos estavam alguns dos integrantes do Serviço Aqualaeste Especial em Comandos Intergalácticos, comumente chamado de SAECI, que tratava de todos os tipos de situações no Sistema Beta Atenuati. A maioria de seus membros usavam máscaras de madeira para não serem reconhecidos, outros não tinham problema em se apresentarem publicamente, o que era o caso de Ralphum Baltazar, um tigre siberiano caramelo e listrado.

Um coro de crianças humanas e thonzes, começaram a cantar o hino de Longamínis.

A busca aumentou e não queremos existir

         Caso não haja justiça com grandiosidade

         Numa terra onde peca um disparado prazer

         Que não é pela vontade de expandir

         Que não é pela vontade de crescer

         Que não é pela vontade de criar poder

         Mas sim pela falta da vontade de vencer

        

         A maior conquista vem depois da notícia

         Pois aí a do progresso iria para a lixeira com malícia

         Encanto, verdade e beleza

         A princípio tudo contra o adeus da preguiça

         Ser, poder e invejar

         É tudo o que aos alheios não tem

         Menos que comer só manjar

         Os ventos mudam e aumenta a lixeira

         Acende o medo e apaga a lareira

         Tudo o que resta é urinar de medo na cadeira

         Phoerios olha mas não vigia

         A esperança, felizmente, é a última que morre

         Em Aquala todos viraram assim

         Donos de seus narizes

         E o orgulho não está mais só em mim

O tigre Baltazar sentou-se ao lado de Thomas, que tentava acompanhar ao hino, mas não acertava nenhuma palavra sequer. Quem fez essa letra bisonha devia ter um espírito realmente excêntrico. O tigre disse ao garoto que os Gukpuk pareciam ser normais mas são de uma família bem incomum.

– Muitos integrantes da SAECI os conhecem muito bem – cochichou Balta, cujas palavras saíam perfeitamente de sua boca. – Blestor é estranho mas é capacitado para governar Longamínis.

– Ele era o vice governador? – perguntou Thomas, bem baixinho. – Não me lembro de tê-lo conhecido antes, ou mesmo Lamboríe ter mencionado seu nome.

– Ao contrário de Lamboríe, que foi posto no governo pelas pessoas de toda a província, Blestor foi eleito pela Assembléia Deltimoral.

– Você o conhece bem, Balta? – o garoto franziu a testa.

– Não. O que te incomoda?

– Esses Gukpuk. Não sei o porquê mas olho para eles e não me vem coisa boa. Sinto algo ruim, uma sensação estranha.

Blestor tagarelava seu famoso discurso no palanque, e surpreendentemente havia muitas pessoas tanto para darem seu apoio quanto para criticar o novo governador, mas a maioria apenas estava lá para conhecê-lo, já que muitos só o tinham visto através de revistas.

– Posso chamá-los de filhos? – disse o gordão que cuspia à cada palavra que saía. – Quem é pai, cuida. Eu não tive filhos e nunca vou ter, afinal odeio crianças. Estou brincando, óbvio.

– ISSO É MESMO UM DISCURSO? – falou Felipe, para que todos no castelo ouvissem, mas claro que ninguém prestou muita atenção já que todos estavam espatifados com aquele começo.

– Bom, eu adoro crianças – Blestor sorriu de lado, graciosamente. – Como governador, meu plano inicial é montar alguns projetos para Longamínis, desde o conserto das pontes nas árvores do Vale Menecau até grandes implantações para o cultivo de inderu e a construção de povoados perto do Castella Hondeias.

Gukpuk, então, abaixou a cabeça e apoiou os cotovelos do palanque, para delírio dos jornalistas thonzes que esperavam alguma manifestação do governador acontecer. Blestor ficou sério e com uma aparência mórbida ao decorrer do discurso.

– O governo tem como papel salientar a população da província sobre o que está acontecendo no cenário dentro e fora dessas terras. No mesmo dia em que aceitei o cargo recebi uma notícia que transformaria minha vida, tanto como pessoa quanto político. O ódio de Tertius está na mira de Aquala. Ele quer roubar tudo o que nosso maravilhoso, esplêndido e verdadeiro deus Phoerios nos deu.

Houve burburinhos entre os que ouviam o governador, movimentação como se alguns estivessem apressados para botar em ordem suas vidas graças ao que Blestor tinha acabado de falar sobre Tertius.

– O governo vai precisar de ordem da população – ele continuava. – Não há motivos para se exaltarem. Estamos na frente do Imperador de Meon e ele nunca nos alcançará. Porém eu, como governador, terei que mudar algumas práticas.

– Você gosta desse homem? – Sofia cutucou Laura, e a menina respondeu que não com a cabeça. A impressão que as duas acabaram de ter sobre Blestor era que ele não tinha capacidade alguma pra ser o que a Assembléia Deltimoral havia lhe imposto ser. Ser atrapalhado não era uma boa qualidade para governadores, e além do mais, governadores que demonstravam não se interessar em melhorar. Gukpuk era bobalhão e sabia disso, mas por uma curiosidade, não se importava mesmo com o risco de ser tirado do poder.

– As pessoas de preto ao lado de fora do Castella Hondeias são o que eu chamo de Protetores. Eles vão prezar e cuidar de Longamínis como nunca antes foi feito, e até segunda ordem serão distribuídos na margem da floresta. As matas aquáticas daqui são os locais onde poderá ocorrer o maior perigo concentrado de seres de Meon, e os Protetores cuidarão para que Tertius não infiltre secretamente suas tropas em nossas florestas.

Jervana, umas dos repórteres thonzes que estavam lá na frente, quase junta à escada, levantou uma questão.

– Sr. Governador, as florestas aqualaestes são quase sem medidas, e as longaminianas são consideradas enormes. Graças à sua imensidão, do começo da floresta chega a ser impossível avistar o que ocorre no meio dela. Como o senhor pretende continuar com essa iniciativa de segurança?

– Você é burra? – berrou Blestor na lata. – Já falei que vou pôr os Protetores no começo das matas, será trabalho deles assegurar a tranquilidade dessa província. Caso falhem, terão que pagar por pena de morte, e esse é um outro assunto que quero tratar com a minha querida e saudosa população.

As caras de quem ouvia o governador eram de pessoas assustadas com tamanho ultraje e desrespeito.

– A partir de hoje, irei criar leis que manterão nossa Longamínis a salvo. Qualquer um, seja homem, mulher ou criança, thonzes, humanos ou artracóis, irão enfrentar pena de morte caso não sigam essas novas leis.

Naquele segundo algumas dezenas de pessoas saíram do gigantesco salão, mas não eram do povo, e sim os Protetores que ouviam também o discurso do lado de dentro. Eles encaravam os aqualaestes como quem não tinha vergonha em olhar com profunda inimizade, não mostravam gentileza alguma, quem reclamasse teria que aguentar ainda mais ira. Ninguém chegava a tocar em ninguém, porém os Protetores não hesitavam em mostrar certo rancor pelo povo que lá vivia.

No jardim do Castella Hondeias, os aliados de Gukpuk vestiam suas capas também pretas e um elmo com espinhos, que parecia tornar suas cabeças grandes ouriços-do-mar. Vestidos assim, os Protetores passaram pelos portões e pelo Largo do Castelo. Os mercadores e artesãos que vendiam seus produtos nas tendinhas pararam para olhar aquela procissão através da fonte de água congelada no meio da praça, que estava coberta de neve.

– Muitos de vocês devem se perguntar o que eu estou fazendo – falava Blestor, ainda em seu discurso. – Sou um homem sem escrúpulos… quero dizer, filhos… que veio de família pobre e muito humilde. Quando a Assembléia Deltimoral me concedeu a honra de governar Longamínis, eu soube naquele exato segundo que era a minha vez de amaldiçoar… quero dizer, agradecer… e retornar todo o amor que essa maravilhosa população me deu durante todos esses anos. Eu só tenho a dizer obrigado a todos vocês e falar que esse retorno que eu explicito será, principalmente, em segurança. Tertius nunca tocará neste planeta enquanto eu estiver no poder.

Os flashes e explosões das câmeras fotográficas começaram, e Blestor Gukpuk recebeu um abraço de uma mulher macérrima mais alta que ele, era uma senhora horrorosa que vestia um casacão de pele bege de rapko, ela era Undilla. O cabelo da velha perua era bagunçado, sensual e chique, que mais parecia uma peruca. Ela era coberta de rugas, pálpebras caídas e um pescoço cheio de pele sobrando.

– Como ela é elegante – suspirou Sofia, que logo recebeu um olhar repreensor até do tigre.

– Não acredito que esteja chorando de verdade – disse Felipe. – Olhem bem para ela, está fingindo estar emocionada, limpando lágrimas que não chegaram a escorrer dos olhos.

– Não existe motivo para tal fingimento – falou Balta, fixado no entorno que acontecia lá na frente, perto da escadaria onde estava o palanque. – Os Gukpuk não precisam da aprovação da população. Como vocês viram agora a pouco, Blestor destratou a repórter Jervana, ele não vai se candidatar, já é governador. Se ele tiver que fingir algo, deverá o fazer para os diretores da Assembléia Deltimoral.

– E não tem ninguém dessa assembléia por aqui? – perguntou Thomas.

– Eu estava em cima da escadaria, junto com os membros da SAECI e consegui ver o salão todo, mas não vi ninguém da assembléia.

– Não deveria ter alguém de lá assistindo como a gente?

– Com certeza deveria, garoto, mas ninguém compareceu.

Mais tarde, no quarto de Thomas, os meninos conversavam com Balta, Lutile e Orivundo Gualli, o pai de Ophelia, que era um homem gordo, alto e que usava bigode, cartola e bengala. O tigre siberiano tinha reunido todos para discutirem o que seria feito nas próximas horas, e logo tudo ficou bem esclarecido, eles iam resgatar a tia de Thomas.

Laura e Sofia ficaram encarregadas de fazerem as malas de todos que iam para o Instituto Flintch, e elas tiveram que arrumá-las na pressa, pois naquele mesmo quarto tudo foi resolvido. Já se sabia como Balta, Lutile e o Sr. Gualli atuariam, eles iriam para o hospício abandonado que ficava atrás da fábrica de doces de Orivundo, a Gualeis. Lá era onde, aparentemente, Haydee Flintch estava presa e sendo tratada como louca.

A mãe de Felipe, Rosana Guinard, foi a encarregada de levar os meninos para a nova casa de Thomas, deixada por sua família, o Instituto Flintch. Eles sabiam que, assim como o hospício onde estava Haydee, o casarão estava aos pedaços e abandonado, mas mesmo assim nada mudou a cabeça do garoto.

Capítulo 2 – Festa na cabana.

“Você pode descobrir mais sobre uma pessoa em uma hora de brincadeira do que em um ano de conversa.” – Platão, filósofo e matemático grego.

ERA NOITE EM LONGAMÍNIS e os flocos de cristais de gelo caíam devagarinho até encostarem no chão coberto de neve. Um garoto estava sentado na margem de um lago congelado, seu cabelo era seco e desgrenhado e parecia ser a pessoa mais triste que havia na floresta. Não era porque estava sozinho nem pelo seu rosto compenetrado num pensamento muito distante dali, mas estava triste porque sua fisionomia era simplesmente daquela forma. Thomas, abraçando os joelhos, lembrava-se de como sua vida havia mudado de uns tempos para lá, e se fosse fazer as contas de quanto tempo se passara desde que se descobriu aqualaeste, teria resultado de mais ou menos seis meses.

Aquele lago na sua frente era o famoso Lago Waltz, que era mais conhecido como O Lago dos Desejos. O garoto olhava para o gelo na superfície, que prendia a água embaixo. Thomas queria mais que tudo poder nadar ali, poder mergulhar e sentir um desejo se realizar, mas era improvável que sobrevivesse em temperaturas tão baixas. Ele queria poder cair naquele lago e poder realizar a vontade que mais prendia seu coração de se libertar, que era a vontade de estar com seu pai.

Perto dali havia uma cabana feita de palha, que parecia apenas um telhado montado na neve. Em uns buracos no meio da palha saíam uns feixes de luz, assim como uma grande luz que saía na abertura triangular, que poderia ser chamada de porta. De lá vinha uma garota agasalhada como Thomas, seu nome era Sofia e usava também um gorro que cobria boa parte do cabelo, seco, armado e embaraçado.

– O quê está fazendo aí sozinho? – ela tentou cruzar os braços mas era difícil com tanta roupa no corpo.

O garoto, voltou a olhar para a água congelada do Lago Waltz, onde do outro lado, bem longe deles, ele via as torres de um enorme castelo. As luzes das janelinhas estavam acesas.

– Não estão comemorando o Natal, Thomas. Aqui não existe Natal. Eu, Felipe e Laura tentamos montar o calendário terráqueo aqui em Aquala e acabamos descobrindo que hoje é dia trinta de julho na Terra.

– Eu acabei estragando a minha festa surpresa, não é? – o garoto riu, meio triste, com um sorriso melancólico.

– Era uma festa de aniversário para você e para o Felipe, e deveria ser surpresa para os dois. Eu e Laura fizemos tudo – falou Sofia, estendendo o braço para que Thomas levantasse. – Venha desejar feliz aniversário para o seu amigo, afinal, você é mais velho um ano, mas ambos fazem aniversário no mesmo dia.

O garoto não segurou a mão de Sofia e voltou a olhar para o castelo, longe deles.

– Vou ter que me sentar? – ela continuou, agachando para sentar-se ao lado do amigo. – Eu me recuso a usar as roupas que os aqualaestes aqui usam. São panos horríveis e sem graça, mas eu usaria só para não sujar as minhas roupas que trouxe da Terra.

– São mais bonitas, mesmo – elogiou Thomas.

Sofia também parou e avistou o castelo do outro lado do lado, onde as imensas árvores tampavam quase toda a visão. Ela respirou fundo.

– Thom, você tem a todos nós…

– Eu sei, eu sei. – ele a interrompeu. – Mas não basta! Vocês são a família que eu escolhi ter, mas eu também escolho ter a minha família de sangue. Queria poder ouvir a voz do meu pai e ouvi-lo me desejar feliz aniversário, mesmo sem presente, como passamos todos esses anos.

– O governador Lamboríe… quero dizer, o ex governador disse que um tal de Arbinelo Treki está a caminho de Longamínis, e que esse homem vai poder ajuda-lo a voltar para a Terra – as mãos de Sofia, aquecidas com luvas, desenhavam no gelo seco da superfície do lago. – Arbinelo é um dos maiores criadores de poderes desde a última Virada Ciclal e já estudou a tribo que sabe se teletransportar. Você poderá aprender muito com ele.

– Lamboríe não está mais no castelo, está? – perguntou Thomas. – Nunca mais o vi.

– Eu o encontrei por esses dias. Desde que renunciou o cargo voltou para a cidade grande, mas acabou voltando para Longamínis.

– Por quê ele voltou?

– Ele disse que além de ser onde está o castelo, um dos pontos sagrados dos deuses, essa província é onde ele pode ficar de olho em você, e tomar conta do descendente do nosso deus, mesmo que da última vez ele não tenha conseguido.

– E deus?

– O quê tem deus? – perguntou Sofia.

– De vez em quando eu paro e penso qual é o plano que Phoerios guardou para a gente, e a única resposta que eu encontro é a pior possível.

– Qual?

– Eu posso ser descendente do nosso deus, mas o que me intriga é lembrar que eu fui o escolhido por ele para ser o guardião da chave para a Sala de Phoerios. Talvez ele só tenha me usado para garantir segurança.

– Em primeiro lugar, você não é o guardião da chave, você é mais que isso, você é a própria chave.

– O que torna tudo pior – retrucou Thomas.

– Mas você esqueceu de que você era um garoto normal até descobrir que era aqualaeste. Depois de tudo o que passamos, você se tornou maior, mais poderoso, e você sabe disso.

– É, eu reconheço que mudei bastante.

– E eu acho que se Phoerios fez de você a chave da Sala, ele guardou pra você o melhor plano de todos. E por onde você estiver, ele estará para ajudar.

– Por quê ele deixaria que a chave fosse qualquer um? – perguntou Thomas em voz alta mas para ele mesmo.

– Você sabe o porquê. Thomas, você não é qualquer um, e nosso deus estará conosco aonde quer que iremos, pois ele quer que terminemos o que começamos. Ele nos ajudará a sair de onde, talvez, ele tenha nos metido.

Naquele instante Thomas deixou aparecer a ponta de uma revista que carregava no grosso casaco que o vestia. Sofia parou de mexer no cabelo louro e frisado no minuto em que ouviu as páginas se amassando quando o garoto se ajeitou sentado na neve. Ela tomou a revista e olhou a capa.

– O quê é isto?

– Quando vínhamos para cá, Felipe me entregou essa revista. Ele pegou com o casal que ia jogar fora, o Sr. e a Sra. Calurgo, que estão hospedados no mesmo corredor que a gente.

– Não estou perguntando o que estou segurando. Óbvio que é uma revista – constatou Sofia enquanto olhava para o casal que estava na capa.

– Felipe disse que são os irmãos Gukpuk. Blestor, o novo governador, e sua irmã Undilla.

– “Extraqualaeste”. Isso é nome de revista? – falou Sofia, fixada no homem engravatado, estrábico, careca e gordo que tomava a capa ao lado de uma mulher com nariz empinado, magra e que vestia como chapéu uma planta carnívora que lhe abocanhou a cabeça. A garota continuou lendo o que havia na capa. – “Extraordinário é só o começo. Conheça o dia a dia dos irmãos que prometeram dias de glória para Longamínis.”

Sofia olhou para Thomas com um olhar preocupante.

– Você também está assim por isso, não está? – ela perguntou.

– Talvez sim. Acho que todos nós sentiremos falta de Lamboríe.

– Espere aí – ela virou-se sentada para o garoto. – Você não deve ficar chateado porque Lamboríe saiu do poder. Vai ser até melhor para todos nós nos aproximarmos dele. Ele tem muitos contatos e vai saber usá-los para nos ajudar, além do mais, agora ele vai ter tempo para a gente. Começando pelo Arbinelo.

– Arbinelo Treki é um velho amigo de Lutile.

– Mas foi Lamboríe que o chamou para que ensinasse o que você deve saber para se aproximar dos duyoktu. E não se esqueça que é essa raça que sabe se teletransportar. Apenas eles.

Sofia olhou também a contracapa da revista com folhas de pano, onde havia uma propaganda de uma casa de turismo aqualaeste.

– “Na Rapis e Rapkos seu destino fica mais perto de você em menos tempo. Consulte nossos pacotes em nossa agência no condado Pertikules, casa 3. Desde a vigésima Menai da Virada Ciclal servindo nossos clientes.”

– Está bem que existem trabalhadores que não possuem um zarmo sequer para poderem voar de um lado para o outro, mas acho que uma agência como essa não tem muito a oferecer num lugar como Longamínis – concluiu Thomas.

– A última Virada Ciclal aconteceu há quinhentos anos, falando como terráquea. A Rapis e Rapkos existe até hoje, deve ter clientes o suficiente para fazer com que exista. Tem algo escrito aqui embaixo que eu não entendi. Deixe-me ler de novo. “Com a nova lei de Blestor Gukpuk, a agência ganhou novos admiradores que se encantaram com os serviços, já que a partir de ontem, foi vetado permanentemente o uso de qualquer meio de locomoção que saia do chão. Continuar – Página 16.”

Thomas e Sofia se entreolharam, assustados com o que acabaram de ler. O garoto se aproximou, não querendo somente ouvir, mas também ler e entender o que estava escrito nas páginas escuras da revista Extraqualaeste. A reportagem dizia o seguinte:

“Não foram somente os cocheiros que ganharam com a nova lei instaurada pelo novo governador Gukpuk, as agências de turismo aqualaestes também fazem a festa.

Na manhã de ontem, dia 2 da quadragésimo terceiro ciclo menai, Blestor Gukpuk disse que a Lei Voarte, que veta montadores independentes de voar, entrou em vigor. O motivo da lei, segundo o governador, é a melhoria da visão do céu, já que, anteriormente havia alegado ter poluição visual nos ares.”

– Isso é besteira! – falou Sofia. – Ele não pode fazer isso. Agora todos vão ficar dependentes das agências?

– Esse não é o pior – lembrou Thomas. – Agora vamos ter que arranjar outra maneira de encontrar a tribo dos duyoktu. Não conseguiremos tão facilmente.

– Não conseguiremos de forma alguma, nem com a ajuda do velho Treki. Vou terminar de ler.

“Esse é apenas o começo – disse o governador Gukpuk à jornalista Jervana – O meu governo pretende fazer algumas mudanças em Longamínis.”

– O quê isso quer dizer? – perguntou Thomas.

– Não sei ao certo – falou Sofia, ao fechar a revista. – Mas tenho certeza de que boa coisa não está por vir.

– Vamos voltar lá para dentro, queria olhar o castelo, fico deslumbrado quando o vejo, mesmo congelando – disse Thomas, com tom de preocupação ao levantar-se. Estendeu o braço para que Sofia fizesse o mesmo.

Aquala estava no meio de um dos invernos mais frios de toda a história, e mesmo Thomas não podendo entrar no Lago Waltz para sentir prazer em ter seu pai ao seu lado durante alguns segundos, ele não deixava de gostar do inverno. O frio que congelava a espinha deixava arrepios gostosos para um garoto que conseguia aguentar tanto a neve.

Embaixo do telhado de palha havia uma mesa comprida de madeira e cadeira ao redor. Poltronas estavam espalhadas pelos cantos, em cima de uma chão oco feito de troncos finos, como uma jangada. Até um bonito tapete com franjas enfeitava a cabana aberta.

Quando passou para dentro, onde a palha armava o telhado a uns dois metros acima dele, Thomas viu um garoto de cabelo curtinho e cacheado com um potuco sentado em sua cabeça. Havia algumas bolas não tão redondas sendo seguradas por cipós. Thomas viu que tinham uma áurea azul em volta, então logo percebeu que eram fígados de Chloetor, o roedor das florestas. O garoto não tinha idéia de como era esse animal, só sabia que seus órgãos eram aproveitados depois que morria, e mesmo que mole e grudento, o fígado era ótimo para iluminar desde os calabouços mais sombrios até as florestas onde havia inúmeras fadas.

Quando o garoto de cabelo cacheado viu Thomas, largou a inderu, que era uma fruta de um metro, em cima da mesa repleta de tortas e doces, e foi falar com o amigo.

– O quê foi? As meninas fizeram isso para a gente – falou Felipe, que tinha um nariz pequeno e grosso com sardas. O monstrinho que estava acima dele esticou o pescoço comprido e anelado e abriu os olhos amendoados, ora pretos ora azuis.

– Eu agradeço de verdade às duas, essa mesa está linda e essa comida muito boa.

– Mas ainda não é tudo – falou Sofia, apontando para a entrada do outro lado, onde havia uma garota com o cabelo ondulado preso num coque, que se esbaldava com um senhor alto e grisalho. Eles eram Laura e Lutile, e faziam doces no ar para enfeitar mais ainda a mesa. Era como segurar uma bola de basquete invisível, e das pontas dos dedos saíam pastas recheadas com sabores inimagináveis. Aquele poder era o mais legal de todos.

Outros convidados estavam naquele pequeno lugarzinho aquecido por uma fogueira no meio da floresta onde a neve caía lentamente. Ophelia, uma menina baixa e gordinha, dançava rodopiando e balançando as mãos como se quisesse matar mosquitos, mas ela só se animava com as canções que se esvaíam do Caixote Ritmo. Quando uma música estava prestes a terminar, Lutile coçava sua pequena barba branca ao pensar no que poderia tocar.

– Escolha uma música – ele dizia à Laura. Ela pensava no que queria ouvir. Quando ela se decidia, o senhor jogava uma bala no ar como alguém que joga uma moeda para tirar cara ou coroa. O doce voava para a boca de Laura, que saboreava durante um instante e depois cuspia na água que transbordava no Caixote Ritmo. Se não acertasse o alvo, a bala faria seu caminho até aquela enorme caixa em cima do tapete. O recipiente era de mármore e estava com água até as beiradas. De um segundo para o outro, a caixa tocava uma outra música, mas naquele momento tocou um coro de Natal.

– Não acredito que queria ouvir isso! – disse um garoto sentado na poltrona e se empanturrando de torta de inderu. Era negro e tinha um cabelo black power tão redondo quanto a barriga de Ophelia.

– Nadjo, eu adoro músicas natalinas – explicou-se Laura. – eu e minha mãe adorávamos, sempre que era véspera de Natal, ouvíamos enquanto comíamos lá em casa.

Thomas olhava constantemente para a garota, pois quando a olhava ele conseguia esquecer dos problemas que o atormentavam dia e noite. Os pensamentos se perdiam na beleza única que Laura tinha, desde o nariz arrebitado e fino com sardinhas até os lábios também finos e delicados. Os dois não conversavam muito, só quando era realmente necessário, pois sempre que começavam a falar sobre assuntos que não fossem para resolver algum problema, seus rostos tornavam-se vermelhos e os olhares começavam a se perder.

O nevisco do lado de fora da cabana tornou-se uma nevasca e a fogueira que flutuava acima do chão feito de troncos foi se apagando. Naquele momento ficou claro que naquela noite todos dormiriam lá.

Ainda havia muita comida em cima da mesa, e antes que acabasse, Guido, um garoto com pouco cabelo na cabeça e rosto com expressões austeras e rígidas, aproveitou para tirar fotografias com a câmera da sua família, que era uma obra de arte à parte. O garoto manipulava uma caixa quase do seu tamanho, onde se escondeu abaixo de um pano preto. Algumas explosões e fumaça fizeram de um simples papel fotografias onde Felipe, seu potuco chamado Luka, e Thomas sorriam ao lado dos doces que sobraram.

O velho Lutile puxou a capa que vestia sobre o casaco e a jogou no ar. O pano, ao encostar no tapete, engrossou, criou espuma e um forro de tecido acolchoado. A capa tinha se tornado um colchão enorme para todos dormirem caso sentissem sono, mas a tempestade de neve que caía lá fora não dava sonolência em ninguém na cabana, todos estavam pra lá de acordados.

– Tive uma idéia, e acho que vocês vão adorar – falou Nadjo, com um sorriso escondido no rosto e olhando com expectativa nos olhos de todos. – Vamos brincar de Cozito Encontro?

– Cozito o quê? – perguntou Guido, agarrado a uma coberta de espessura grossa.

Havia uma espécie de aquecedor que substituiu a fogueira. Era uma pedra gigante que Ophelia trouxe do seu quarto no castelo. Esquisito era pouco para o jeito como eles tratavam uma pedra, mas também não era uma comum, ela era molenga e soltava faíscas como em um pequenino show de fogos.

– Cozitar vocês sabem o que é, não sabem? – continuou Nadjo, e antes que qualquer um pudesse responder, ele mesmo o fez. – Cozitar é um poder que temos de nos esconder em objetos, geralmente nos do nosso tamanho, nos transformando nos mesmos.

– Nós sabemos o que é cozitar, Nadjo, e também sabemos como fazer – intrometeu-se Sofia. – O que não sabemos é que brincadeira é essa.

– É simples – disse o garoto. – Alguém é escolhido para contar devagar até dez. Enquanto conta, os outros deverão cozitar em qualquer objeto que conseguir. A pessoa que conta tem que encostar em algum objeto que achar ser alguém cozitado e dizer o nome de quem é, se errar perde e tem que contar novamente. Se o escolhido para contar for acertando os nomes de quem for encontrando, o primeiro que ele tiver encontrado deverá ser o “contador” na próxima rodada.

Não houve espera e logo Sofia foi empurrando Felipe para que ele começasse a contar.

– Garota, não me toca! Não quero começar sendo o contador.

– Eu conto – disse Thomas ao se levantar do colchão e se aproximar da parede de palha, que por acaso não estava tão fria quanto ele imaginava. – Vou começar!

Todos levantaram depressa e pareceram loucos, afinal tinham apenas dez segundos para encontrar algum objeto discreto para se cozitarem. Felipe correu e tocou na primeira coisa que lhe veio à cabeça, que ele provavelmente adoraria ser, a torta de inderu que estava na mesa e pela metade. Quando o seu dedo indicador encostou na pasta de açúcar, seu corpo todo, com casaco e tudo, foi sugado para a torta.

Guido e Nadjo foram espertos demais, e no momento em que largaram os cobertores, se apressaram em direção à pedra que Ophelia trouxe do castelo. Guido foi mais rápido, e mesmo soltando faíscas de tão escaldante, não negou cozitar e ser sugado pela pedra. Ele sabia que Thomas não a encostaria.

Nadjo, então, sem mais ideias, acabou entrando na poltrona que lá havia, ao contrário de Laura que cozitou no Caixote Ritmo e Sofia que correu para encostar o dedo indicador e ser sugada pelo tênis de Laura.

Ophelia andou de um lado para o outro durante três segundos, pisou no colchão e o adentrou, exatamente como se pula num lago.

Thomas se virou e começou a procurar seus amigos. A primeira coisa que ele viu foi Luka, o potuco de Felipe, sentado como um bebê na poltrona, com as mãozinhas segurando a barriga gorda e flácida. A segunda foi o braço de Ophelia esticado para cima do colchão, o que era bem engraçado, afinal Thomas percebeu que a garota não tinha cozitado direito.

Todos eles brincaram de Cozito Encontro durante várias rodadas. Lutile dormiu bem no sofá, o que deu a entender que os gritos de susto e altas risadas não deixaram seus sonhos nem um pouco turbulentos. Aquela noite foi a mais fria que eles haviam passado em Aquala, mas nenhum deles podia negar que também foi a mais divertida, e brincar foi a melhor escolha que eles podiam ter feito, afinal os fez lembrar que ainda eram crianças.

Capítulo 1 – A Criação.

“(…) como o Castella Hondeias, construção erguida na época dA Criação. Suas paredes e muros são reais, mas um toque divino, para sempre, o deixará em pé, segundo crenças dos antigos povos arbeicos.” – A História de Longamínis. QERZIMAE, Bripohlla. Cap. 11 – pg 310.

NADA ERA ESCURO quando se tratava daquela imensidão onde somente havia nuvens, algumas brancas e outras rosas. Aquele era o lar dos deuses. Phoerios era um homem velho de barba muito comprida, tão grande que chegava a dar voltas pelos pés e ser confundida com as nuvens, que era onde os outros deuses também andavam. Ele era o mais alto e sábio, tinha o rosto corado e sobrancelhas tão brancas quanto a neve ou quanto o leite mais puro. Seu rosto era redondo e cheio de rugas, o que mostrava toda a experiência ao longo dos mais de milhões de anos de sua existência até aquela hora.

Uma concha branca em espiral flutuou sobre o chão de nuvens, rodou, e de sua abertura saiu Loosendra, uma bela e paciente deusa que tinha a cabeça coberta por antenas que lembravam fios de cabelos, só que bem mais espessas e que chegavam até as nuvens, onde se mexiam sozinhas. A concha em espiral circulou Loosendra até que ela a pegou e a pôs nas costas, aderindo ao corpo da deusa. Seu vestido branco parecia ser do nevoeiro onde pisava.

Phoerios estava na ponta de um precipício, onde avistava a terra abaixo dele. Era uma esfera negra no meio das nuvens laranjas. Então, ele chamou a deusa caracol:

– Loosendra venha cá! – olhando para trás ele estendeu o braço para que ela se aproximasse. – Veja.

– É agora, não? – ela andou como se não tivesse pernas, apenas deslocou-se como um espírito.

– Onde estão os outros? – perguntou Phoerios serenamente, e fechou os olhos para sentir a brisa que vinha de baixo.

– Estão atravessando o caminho. – ela respondeu.

No segundo seguinte, um leve tornado surgiu ao lado da cadeira dourada de Phoerios, e dele saiu um pequeno ser que tinha a cabeça parecida com a de uma tartaruga, exceto pelos filamentos nas laterais do rosto. As patas também eram iguais, porém com dedos maiores que os dos humanos. Esse deus era chamado de Rusten pelos outros, e não tinha casco algum nas costas como uma tartaruga teria.

Ondinhas surgiram no chão de nuvens, e foi aí que os outros deuses viram corcovas azuis naquele pequeno mar branco. Quando saltou para andar normalmente, Crintyk apareceu. Tinha um tentáculo na cabeça que rodopiava pelo seu corpo comprido e fino. Havia pequeninos buracos rasos espalhados na pele, e, de longe, eram como sardas de uma menina ruiva, só que verdes.

– Quase todos estão aqui, mas ainda preciso do meu bom e velho amigo Dwinler para começar a nossa criação – avisou Phoerios, abrindo os braços para acolher seus queridos deuses. E foi naquele instante que saiu de uma nuvem uma outra nuvem, contudo, essa tinha galhos nos pés e soltava sementes amarelas por onde voava.

– Ainda bem que chegou, Dwinler – falou o pequeno Rusten, num tom amigável e a voz grossa. – Não poderíamos começar sem você.

O deus, que surgiu de outra nuvem, flutuava entre seus amigos e os fazia rir quando os encostava, já que seu corpo quente os dava uma sensação indescritível de felicidade. Dwinler tinha bigodes e cabelo loiro compridos que ondulavam enquanto se movimentava.

O único rosto triste apareceu além das nuvens laranjas que se moviam bem atrás da cadeira dourada. Phoerios sentiu sua presença e olhou para trás, não acreditando encontrar quem ele avistou. Usando um vestido igual ao de uma noiva e tranças jogadas ao vento, a deusa Mindihy se aproximou devagar. Era a mais doce divindade entre aqueles que lá residiam. Seus olhos eram grandes e violetas, o nariz era somente dois buracos no rosto, porém os lábios pequenos em formato de coração eram delicados e rosas. Ela tinha braços compridos e o resto do corpo vermelho para laranja com manchas púrpuras. Os cinco dedos em cada mão eram longos e com bolotas nas pontas. A cauda que a fazia andar era extensa e coberta pelo vestido.

– Mindihy, que bom que veio. – agradeceu Phoerios, segurando-a pelo ombro com espinhos. – Mas onde está Tertius? Ele não vem?

A deusa negou com a cabeça, o que fez suas tranças balançarem.

– Eu entendo. Não poderei mais adiar, temos que criar Aquala agora.

– Ele se recusou a vir porque acha que os poderes que usaremos são inúteis – disse Mindihy, olhando triste nos olhos de Phoerios. – Tertius quer que as raças sejam mais poderosas que as que criaremos. Ele quer que tenham a capacidade de controlar mentes. Isso não é certo, é?

– Receio que não. Você tem o maior coração que eu já encontrei, e sempre almeja dar valor a tudo que pedem, mas nesse caso, Mindihy, você não poderá dar ouvidos a Tertius. Você é a única que organiza os poderes existentes nos projetos desses deuses, e a única que irá colocá-los no corpo de cada raça que criaremos, por isso é integralmente capaz de fazer o que ele quer, mas eu peço para que não o faça.

– Sim, Phoerios, você está certo – ela sorriu. – Tertius não veio porque sabe que está errado. Como fui tão estúpida?

– Você apenas quer agradar a todos, Mindihy. Não se culpe por ter bondade em seu espírito.

Seis deuses já olhavam para o precipício onde a esfera negra repousava entre as nuvens. Phoerios ergueu os braços e começou a balançá-los misteriosamente. Naquele instante eles perceberam que aquela esfera repentinamente deu a primeira volta sob seu próprio eixo e não parou mais.

– Comecem – falou o deus com as mãos esticadas e pronto para pôr seus projetos em dia.

Dwinler se jogou do despenhadeiro e voou até o que ele acabou entendendo ser um planeta. Voou em velocidade máxima até lá e a esfera negra somente aumentava. Atrás dele, poucas gotas de água o acompanhavam, mas logo a massa líquida aumentava. Ele se aproximou da terra escura e sem vida, molhando-a e criando pequenas ondas por onde passava.

Do precipício desceu Loosendra por um tubo de nuvem que ela mesma fez para conseguir chegar à terra. Rolando pela concha espiral, a deusa criava criaturas adultas parecidas com ela. Logo depois foram chamadas de artracóis.

Dwinler voava velozmente e logo os mares começaram a surgir da terra. Ele adentrava o piso negro e quando saía, surgia grama verde, mergulhava no chão do planeta e, no momento em que voltava a voar, robustas árvores cresciam das sementes amarelas caídas pelo caminho.

As mãos de Phoerios brilhavam em azul claro. Uma áurea que foi jogada por ele alcançava a terra do planeta e causava impacto na superfície, criava montanhas imensuráveis e fazia crescer alpes agigantados. Os abalos abriam os mares e faziam ondas colossais muito maiores que Dwinler, que sorria e desviava da agitação que ameaçava cair em cima dele. Era um espetáculo que ele almejava participar há muitos anos, tempo suficiente usado pelos deuses para fazer com que tudo desse certo.

Os artracóis de Loosendra eram nascidos no ar e, antes de postos nas terras verdes e férteis de Dwinler, eram envolvidos pelo poder mágico de Mindihy, cuja ventania e luz que esvaíam das conchas os faziam crescer e brilhar como a luz do Sol.

O pequeno e poderoso Rusten desceu para o planeta através de um tornado nas patas traseiras, que o fazia voar também. Por onde passava, uma chuva de pó prateado era jogada, e, quando tocava a terra verde, fazia exércitos de outros Rustens explodirem. Não era iguais ao deus, mas parecidos. O nome de suas criações eram evies, uma raça sábia e poderosa.

Por onde Dwinler voava, as florestas cresciam atrás. Onde era negro tornava-se azul, verde, laranja, rosa, e muitas outras cores ainda indefinidas. O deus, que voava de olhos fechados, não se prendia a um projeto já definido, ele ia além da imaginação para criar beleza por onde passava.

Phoerios girava o planeta com as mãos esticadas e dedos que balançavam depressa. Ele havia escolhido altas montanhas para elevar muros de castelos, mas quando pensou nas magníficas torres e jardins que poderiam ter lá, se privou a apenas criar um, uma peça única cujo nome seria Castella Hondeias. Logo, as pedras flutuaram e se amontoaram. Em poucos segundos, o espaço onde não havia nada era ocupado por torres altíssimas e outras nem tanto, mas o poder que vinha de lá ultrapassava as expectativas dos outros deuses. Não era uma visão divina e esplendorosa, mas sim uma magnífica cena de amor ao planeta que estava sendo criado.

– Phoerios, qual nome poderemos dar à essa terra tão cheia de vida? – perguntou Mindihy, o observando.

– Aquala. Sempre foi Aquala.

Crintyk sobrevoou acima do penhasco de nuvens onde os deuses antes estavam, e resolveu agir de lá. Ela abriu os braços azuis para Aquala e fez uma tempestade com a água transparente dos oceanos. Um redemoinho marinho criou uma tromba d’água e de lá saíram thonzes, uma raça parecida com Crintyk, só que ao invés de um tentáculo na cabeça, tinham oito.

Dwinler havia feito árvores imensas nos mares, tão grandes que as plantas amarelas dos galhos mais altos chegavam a ser maiores que os outros troncos das florestas. Crintyk os observou e fez que de seus frutos nascessem cervunis, raça verde que tinha uma bola atrás da cabeça e duas antenas caídas. Essas cristuras cresceram instantaneamente e caíram nas águas, onde puderam nadar como verdadeiros seres aquáticos.

Mindihy, ao lado de Phoerios, fez com que as criaturas de Crintyk se tornassem poderosas, elevando-as também até o céu e fazendo com que pós brilhantes explodissem aos seus redores.

Mais toques e retoques nas montanhas, árvores, mares, penhascos e manchas coloridas no céu, e logo Aquala estava pronta. Phoerios, por pouco deixou escapar sua outra criação, os humanos. De um pedaço de nuvem, o deus os moldou com o sopro de sua boca e o vento de Dwinler, até que Mindihy os envolveu com uma luz branca.

– Pronto, agora é só colocar esses seres na terra – avisou a deusa vermelha.

– Esses são especiais, habitarão Aquala mais que qualquer outra raça. Os humanos são a maior fonte de amor que qualquer aqualaeste poderá encontrar.

– Amor? O que você quer dizer com “amor”?

– Você verá ao longo dos anos, Mindihy, você verá.